Há quatro anos Paulo Paulino Guajajara (1993-2019), assassinado numa emboscada na última sexta-feira, viu metade da Terra Indígena Araribóia ser consumida pelo fogo. As chamas foram controladas nos últimos dias de outubro de 2015, depois de arderem por mais de dois meses. Os Guajajara acreditam que o incêndio foi criminoso. Paulo Paulino protegia a floresta e deu sua vida por ela. Segundo reconhece o texto final do Sínodo da Amazônia, os indígenas têm “uma visão integradora da realidade, capaz de compreender as múltiplas conexões existentes entre tudo o que foi criado”. Como vivem em harmonia com a natureza, acreditam que não há pecado maior do que agredi-la. Podemos não ter a mesma conexão com o meio ambiente que eles, mas como não olhar para florestas queimando e rios mortos e não pensar “que pecado”?
O dia 5 de novembro marca os quatro anos da tragédia de Mariana. O Rio Doce e 19 pessoas morreram, mas é como se nada tivéssemos aprendido: neste momento, o Pantanal está em chamas e o litoral nordestino, tomado pelo óleo. O Sínodo da Amazônia, realizado em outubro, no Vaticano, definiu o “pecado ecológico como uma ação ou omissão contra Deus, contra o próximo, a comunidade e o meio ambiente”. O documento redigido pelos bispos católicos afirma ainda se tratar de “um pecado contra as gerações futuras”, causado pelo desenvolvimento econômico predatório; um desrespeito ao Criador e à sua obra, que são o planeta Terra e todos os seres que nele habitam.
Não é preciso ser religioso para concordar com a definição da Igreja Católica ou para admitir que o Brasil peca, e muito, em nome de um modelo de desenvolvimento econômico predatório e insustentável. Quatro anos se passaram, mas ainda não há previsão para julgamento de responsáveis, e todos aguardam em liberdade, além de estarem livres da acusação de homicídio. O Ministério Público de Minas Gerais calcula que foram 700 mil atingidos. Até agora, 9.120 indenizações foram pagas para quem teve perda de renda ou bens materiais e, segundo a Fundação Renova, até agosto deste ano, 319 mil moradores receberam indenizações ou auxílio financeiro.
As vítimas de outro pecado brasileiro recente foram lembradas no Vaticano, num evento paralelo ao Sínodo. No dia 25 de janeiro, o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), deixou 270 pessoas mortas e cerca de 1,3 milhão de pessoas que vivem às margens do Rio Paraopeba podem estar contaminadas com metais pesados. Em Mariana, o primeiro diagnóstico toxicológico aprofundando sobre a população atingida só foi apresentado três anos depois do desastre. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz, 10% dos 40 mil moradores do município de Brumadinho foram diretamente afetados pelo desastre. No mesmo relatório a instituição afirma que todas as pessoas que vivem às margens do Rio Paraopeba foram atingidas de alguma forma, não só pelo desastre em si, mas também por questões econômicas e sociais decorrentes dele.
A Vale pecou primeiro por omissão: segundo o primeiro inquérito da Polícia Federal, concluído em setembro, a empresa vinha sendo alertada desde 2017 para a falta de segurança na mina do Córrego do Feijão. A PF ainda aguarda a conclusão das perícias sobre as causas do rompimento para apontar responsáveis pelos crimes ambientais e pelas 270 mortes. Em 28 de outubro saiu o resultado da quarta CPI sobre Brumadinho, desta vez na Câmara Federal – houve antes no Senado, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e nas Câmaras de Vereadores de Belo Horizonte de Brumadinho. O relator pediu o indiciamento de ex-presidente da Vale e mais 21 pessoas por homicídio doloso – quando há a intenção de matar. Mas o que vem depois?
Não pagamos nossos pecados em Mariana e Brumadinho e já cometemos outro, que pode ser ainda maior, no litoral nordestino. Como em Brumadinho, pecou-se por omissão. O Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNC), que deveria ser acionado no dia 2 de setembro, só entrou em vigor 41 dias depois, em 11 de outubro. O Ministério do Meio Ambiente também desconsiderou a nota técnica de um analista da pasta, que alertava que a extinção de três comitês poderia prejudicar o combate a desastres causados por óleo. O documento foi assinado no dia 26 de abril, 15 dias depois da publicação do decreto 9.759/2019, que extinguiu colegiados considerados “supérfluos”. O corte atingiu os comitês concebidos pelo decreto de 2013 que criou o PNC.
Também se pecou por omissão no assassinato de Paulo Paulino. Desde o início do ano os Guajajara alertam para a invasão de suas terras e em setembro foi o próprio governo do Maranhão que pediu à Funai e ao Ministério da Justiça proteção para a Terra Indígena Governador, que fica próxima à Arariboia e também é habitada pelos Guajajara. Para não pecar mais primeiro é preciso reconhecer seus pecados.
Saiba mais:
Documento final do Sínodo Amazônico
Tragédia de Mariana: rejeitos continuam em Bento Rodrigues 4 anos após rompimento
“O rio está morto.”, Depoimento de Shirley Krenak à revista Época
Em 2015, rompimento de barragem matou 19 pessoas
Bispos querem aprovar conceito de “pecado ecológico” no Sínodo da Amazônia
Mariana: quatro anos após rompimento de barragem, não há previsão para julgamento de responsáveis
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10% da população de Brumadinho foi afetada pelo desastre
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