“Desesperar, jamais”, diz a canção de Ivan Lins. Mas, diante dos últimos acontecimentos, até os mais fortes podem desanimar: “A Amazônia é como um ser gigantesco, de uma divindade enorme. Imaginava que aquela grandeza toda fosse capaz de achar uma saída para o dano que estamos fazendo nela. Quando eu vi que não, isso me baqueou”, disse Luciana Gatti, pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ela liderou o estudo que descobriu que a maior floresta tropical do mundo já emite mais CO₂ do que absorve. Para a cientista, a situação é ainda mais grave do que pintou a prévia do último relatório do IPCC da ONU. Pode ser pior? E é.
Segundo uma recém-divulgada análise do projeto MapBiomas, o Brasil perdeu 15,7% da superfície de água nos últimos 30 anos. Assim o sertão não vira mar. Ao todo, 3.100 km² de área foram para o ralo, o que dá aproximadamente mais de uma vez e meia de toda água doce do Nordeste. O estado mais atingido é o Mato Grosso do Sul, que viu sumir 57% de seus recursos hídricos. No incêndio do ano passado, quase 1/4 do Pantanal virou cinzas. Segundo o boletim do MapBiomas, ele também já perdeu 74% da água desde 1985. O famoso ecossistema mato-grossense corre o risco de perder o título de maior planície alagada do planeta.
As principais causas desse desastre são velhas conhecidas: “Mudanças no uso e cobertura da terra, construção de barragens e de hidrelétricas, poluição e uso excessivo dos recursos hídricos para a produção de bens e serviços alteraram a qualidade e disponibilidade da água em todos os biomas brasileiros”, afirma comunicado oficial do MapBiomas. “Se não implantarmos a gestão e uso sustentável dos recursos hídricos considerando as diferentes características regionais e os efeitos interconectados com o uso da terra e as mudanças climáticas, será impossível alcançar as metas de desenvolvimento sustentável”, alerta, ainda, o texto. Só que aí entra em cena outro antigo problema brasileiro: a falta de continuidade. Quando muda o governo, mudam as políticas de desenvolvimento do país.
Deixemos as mazelas mais conhecidas, como o desmatamento desenfreado da Amazônia, que vem causando estiagens nunca vistas justamente no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste do país, para falar de uma não tão óbvia assim: a obsolescência programada de nossa infraestrutura. Por aqui, é mais fácil construir uma estrada nova do que recapear a que está esburacada – dizem por aí que o fenômeno é mais um efeito colateral da corrupção, mas não digressionemos. Precisamos ter isso em mente num momento em que a sanha desenvolvimentista está sem controle. Um exemplo é se falar em construção de novas estradas de ferro, como a Ferrogrão, quando o país tem uma grande malha ferroviária à espera de reparos. Investir em recuperar essas vias não seria mais viável?
Já que o assunto é água, temos um exemplo mais palpável. O Brasil sempre tirou a onda de ter uma matriz energética de baixo carbono justamente por suas hidrelétricas. Porém, em vez de erguer novas barragens – que estão entre as maiores causas desse pesadelo hídrico –, restaurar e modernizar usinas antigas seria uma solução muito mais barata e ambientalmente correta. Daria para acrescentar uma Belo Monte de energia no país dando um trato nas que já estão aí – e o melhor é que, diferentemente da usina que está arruinando o Rio Xingu, elas funcionariam!
Hoje, o país tem 1.495 hidrelétricas que, juntas, geram 109 mil megawatts (MW). Muitas delas têm mais de meio século de funcionamento e, segundo um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), bastaria modernizar 51 delas para adicionar mais 10 mil MW ao nosso sistema. Entre 2006 e 2016, os Estados Unidos aumentaram em 70% a produção de eletricidade por via hídrica apenas recauchutando equipamento antigo.
Aprendemos muito nestes anos, principalmente depois que passamos a ouvir com atenção o que tinham a dizer os povos tradicionais; além disso, os cientistas do IPCC asseguram que ainda há tempo para adiar o fim do mundo. Basta que as palavras regeneração e restauração se juntem à preservação para nos nortear. Logo, não tem cabimento entregar o jogo no primeiro tempo. Nada de correr da raia, nada de morrer na praia.
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