Aldeia global

setembro 2018

Saiu o último boletim do tempo: um recém-lançado relatório da ONU informa que as guerras e as mudanças climáticas vêm fazendo a fome aumentar há três anos consecutivos; o número de pessoas subnutridas no mundo chegou a 821 milhões. E esta é só a última má notícia ligada ao clima. Como sair dessa cilada? Os povos indígenas e as comunidades tradicionais conhecem o caminho: viver em paz, coletivamente, e em harmonia com a natureza. Mas eles sabem que não moram sozinhos no planeta e, como muitos de nós, sofrem as consequências de decisões alheias. Por isso querem ser mais ouvidos, não só para que seus direitos sejam respeitados, mas também porque têm conhecimento a oferecer.

Esta primeira quinzena de setembro já é histórica nesse sentido. Pela primeira vez, houve uma reunião dos Guardiões da Floresta nos Estados Unidos: o grupo, formado por entidades que representam povos tradicionais das Américas e da Indonésia, esteve no território dos Yurok, na Califórnia, trocando experiências sobre preservação ambiental. Foi uma espécie de pós-graduação em saberes tradicionais. E no encontro do Governors’ Climate and Forests Task Force, na cidade de São Francisco, 34 governadores de estados de nove países firmaram uma parceria inédita com os povos tradicionais, para atuarem em colaboração contra as mudanças climáticas.

Os indígenas das mais diversas regiões e etnias se tratam entre si mesmos como “parentes”. Essa família só cresce. É aldeia global se formando, juntando todo mundo, indígena ou não, que se preocupa com as consequências da atividade humana no bem-estar do planeta.

A delegação brasileira nos Guardiões da Floresta é formada por representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). No território Yurok, puderam buscar soluções para problemas em comum. Os incêndios florestais castigam severamente a Califórnia há dois anos, e os indígenas têm trabalhado em conjunto com agências do estado no combate ao fogo. É o reconhecimento oficial da importância dos saberes tradicionais. Os Yurok dividiram conhecimento, mas também receberam: os Guajajara, acostumados a combater incêndios – por vezes criminosos – em suas terras, na Amazônia maranhense, têm experiência de sobra no uso do próprio fogo para apagar as chamas.

Outro problema em comum: a falta de poder de decisão na gestão dos rios que cortam o seu território. “Nosso modo de vida morreu junto com o barramento do São Francisco”, disse Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, aos parentes americanos. Ainda nos anos 1980, os Tuxá foram removidos de suas terras para a construção da Hidrelétrica de Itaparica (hoje, Luiz Gonzaga), na Bahia. Enquanto a Amazônia segue ameaçada de ser inundada por hidrelétricas, os Yurok tiveram recentemente uma vitória histórica na Justiça: o direito de retirar as barragens que sufocavam o Klamath, seu rio sagrado.

A ação corria desde 2006 na Suprema Corte dos Estados Unidos. Juntando ciência convencional e sabedoria tradicional, eles conseguiram comprovar os prejuízos ao meio ambiente e à economia local. Nos EUA, mais de 800 represas foram removidas de rios nos últimos 20 anos. O retorno ao fluxo natural da água tem recuperado ecossistemas e favorecido a reprodução de espécies nativas que estavam desaparecendo, como o salmão. Não só os indígenas saem ganhando com isso.

Das terras Yurok, os Guardiões da Floresta partiram para São Francisco, cidade onde foram realizados dois importantes eventos que antecipam a COP 24, que acontece em dezembro, em Katowice, na Polônia: o já citado encontro dos Governors’ Climate and Forests Task Force (dias 10 e 12) e a Global Climate Action Summit (de 12 a 14). Antes, participaram do Levante pelo Clima (Rise for Climate), convocado pela ONG 350.org. Foram mais de 900 ações pelo clima, em 95 países que reuniram mais de 250 mil pessoas. Em São Francisco, a marcha atraiu mais de 30 mil, com os Guardiões da Floresta na linha de frente. “Precisamos destravar o processo de demarcação de Terras Indígenas. Viemos aqui dar o nosso recado para o mundo, mostrando a força da juventude e da mulher no combate à violação dos direitos humanos e dos direitos indígenas”, disse Tuxá.

Criado em 2009, o Governors’ Climate and Forests Task Force é formado por governos de 38 estados de 10 países: Brasil, Colômbia, Equador, Indonésia, Costa do Marfim, México, Nigéria, Peru, Espanha e Estados Unidos. Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins representam o país. A decisão mais importante tomada no encontro foi a formalização de um acordo de cooperação entre governos e povos tradicionais: “Hoje, reconhecemos o papel essencial das comunidades locais e dos povos indígenas na conservação das florestas tropicais e no desenvolvimento de estratégias efetivas de mudança climática”, disse o governador do Estado de Jalisco (México), Aristóteles Sandoval.

Na Global Climate Action Summit, Uma Gota no Oceano e Apib apresentaram o painel “Em Nome de Quê?”. Nele, lideranças indígenas, debateram os resultados do relatório “Cumplicidade na destruição: como os consumidores do Norte sustentam o assalto à Amazônia Brasileira e seus povos”, produzido pela ONG internacional Amazon Watch. O estudo mostra a relação de políticos da bancada ruralista com as grandes multinacionais e como essas empresas, mesmo que indiretamente, contribuem para destruição da Amazônia. “É preciso que o mundo, especialmente os povos do norte, da Europa e dos EUA, tenham essa consciência: de que o suco que você bebe, a bota que você calça, o chocolate que você come, o açúcar que você consome, a soja que você consome, o bife que você come estão sendo produzidos em Terras Indígenas”, disse Eloy Terena, assessor jurídico da Apib.

O relatório identifica os principais agentes da destruição da Floresta Amazônica e as consequências sobre os povos tradicionais que nela habitam. Além disso, apresenta os nomes de seis deputados ruralistas, de diferentes estados (Mato Grosso, São Paulo, Amapá, Pará e Paraná) que são os principais fornecedores dessas multinacionais, de diferentes commodities – soja, milho, algodão, laranja, eucalipto, trigo, frango e dendê. Todos apresentam um histórico de corrupção e são acusados de favorecerem crimes ambientais, sociais e econômicos relacionados à Amazônia Brasileira. E cinco deles são candidatos à reeleição.

É hora de levar nossa aldeia global ao Congresso também.

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