A impunidade leva à repetição do delito e a corrupção é insustentável: duas lições óbvias que teimamos em não aprender. Quando pensamos em Brumadinho, é inevitável relembrar que há três anos aconteceu o pior crime ambiental do Brasil, que este crime continua impune e que havia corrupção da grossa envolvida. O rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, também em Minas Gerais, matou 19 pessoas e o Rio Doce, mas ninguém foi responsabilizado criminalmente ainda; e a Samarco, uma joint venture da brasileira Vale com a empresa anglo-australiana BHP Billiton, só pagou 6% dos R$ 610 milhões em multas que lhe foram aplicadas. Se o vazamento desta vez foi menor – 12 milhões de m³ de rejeitos tóxicos contra 50 milhões de m³ do desastre de 5 de novembro de 2015 – seu índice de letalidade foi muito maior: pode passar dos 300 mortos. Há uma dura verdade que devemos encarar: não aprendemos as lições acima porque, mesmo 196 anos depois de sua independência, o Brasil ainda é tratado como colônia extrativista. E a vida do cidadão brasileiro é o seu produto mais desvalorizado.
Ramon Junior Pinto, de 34 anos, ia comemorar o aniversário de 5 anos de sua filha no dia seguinte ao desastre; Letícia Mara Anísio Almeida, 28, tinha ligado para a babá de seu filho de 1 ano, pouco antes de a barragem se romper; e a pedido de seu chefe, Daiane Caroline Silva Santos, 32, havia voltado ao trabalho antes do fim de sua licença-maternidade, justamente naquela sexta-feira fatídica. Seu filho, Heitor, tem 4 meses. Aproximadamente 3,5 milhões de brasileiros vivem em cidades que ficam próximas a barragens com risco de rompimento. Isso dá cerca de 2% da população do país.
O Brasil tem um histórico de acidentes como esse a cada dois anos, desde 2001 – quando uma barragem da mineradora Rio Verde se rompeu e matou cinco pessoas, em Nova Lima (MG). Um relatório da Agência Nacional de Águas (ANA) lançado no fim do ano passado indicou que, em 2017, 45 construções do tipo, espalhadas por 13 estados e mais de 30 municípios, tinham defeitos estruturais. Segundo a mesma ANA, a Vale tem 175 barragens, 56 das quais classificadas de “alto dano potencial associado”. A Agência Nacional de Mineração (ANM) conta com somente 35 fiscais para atuar nas 790 barragens de rejeitos de minérios do país. Como não se arrepiar e se indignar?
Brumadinho já é o pior acidente de trabalho da história do Brasil, superando o desabamento do pavilhão de exposições do Parque da Gameleira, em Belo Horizonte, em 1971. Naquela ocasião, 69 trabalhadores perderam a vida. E, lamentavelmente, tudo leva a crer que será o maior do mundo. Em 2012 a mineradora, que atua globalmente, ganhou o Prêmio Public Eye: a Vale foi eleita, com 25 mil votos, a pior empresa do planeta em se tratando de falta de respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente. A premiação é realizada desde o ano 2000 pelas ONGs Greenpeace e Declaração de Berna. A mineradora ficou à frente da Tepco, maior empresa de energia do Japão, dona das usinas nucleares de Fukushima. A Vale também é acusada de crimes ambientais em países que vão de Moçambique ao Canadá.
Minas Gerais tem mais de 400 barragens de rejeitos. De acordo com a auditoria do TCU, de 2016, o antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) precisava de 384 funcionários, mas só tinha 79. Hoje, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), que substituiu o departamento, este número caiu para 74. E ainda falam em enxugar mais?
A Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, vem recebendo multas ambientais desde 1988, segundo os registros do Sistema Integrado de Informação Ambiental de Minas Gerais (Siam). No ano passado, o Ministério Público do estado já havia aberto um processo específico para investigá-la. Apesar disso – e ainda que sua barragem tivesse sido construída com tecnologia hoje considerada ultrapassada – a empresa foi favorecida em 2017 por uma mudança de regra estadual, na gestão do ex-governador Fernando Pimentel (PT). Assinada pelo secretário de Meio Ambiente Germano Luiz Gomes Vieira, mantido no cargo pelo atual governador, Romeu Zema (Novo), a Deliberação Normativa 217/2017 alterou padrões de risco que fizeram o empreendimento passar do mais alto grau de potencial de degradação ambiental para um menor. Com isso, passou a operar 88% acima de sua capacidade anterior. A mudança foi contestada pelo Fórum Nacional da Sociedade Civil na Gestão de Bacias Hidrográficas (Fonasc), que detectou uma série de inconsistências. Mas não se trata de demonizar uma única empresa ou um só político, mas de questionar um modelo de desenvolvimento que não leva em consideração a segurança do cidadão e do meio ambiente.
A Vale não é a única vilã dessa história, é claro. E também não se trata de uma questão partidária ou de governo, mas de Estado – sociedade civil incluída. Se é preciso reconhecer a celeridade do atual presidente em agir diante da tragédia – diferentemente do que aconteceu no caso de Mariana –, não podemos esquecer do pouco-caso que ele manifestou em relação à preservação do meio ambiente, não só durante sua campanha, mas logo em seus primeiros atos depois da posse. O próprio ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Partido Novo), foi condenado pela Justiça justamente por manipular dados para beneficiar mineradoras na Área de Proteção Ambiental Várzea do Tietê, quando era secretário estadual da pasta em São Paulo, pelo PSDB. Brumadinho obrigou o governo federal moderar seu discurso favorável à flexibilização do licenciamento ambiental. Ainda é pouco, mas temos que nos agarrar a essa chance de recomeço.
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