É natural: o Projeto de Lei de estreia apresentado pela primeira indígena eleita para o Congresso Nacional, Joenia Wapichana, torna hediondos crimes ambientais. Por viverem em contato íntimo com a terra, os povos originários têm a consciência de que não são seus senhores, mas parte dela. Para eles essa ligação é espiritual, mas também carnal, como diz Ailton Krenak: “Quando nós falamos da terra, falamos do planeta como organismo vivo. Nós somos filhos desse organismo vivo”. A deputada federal (Rede/RR) protocolou seu projeto na semana passada, dez dias depois do crime de Brumadinho. Não se trata de timing, mas de estar em sintonia com os acontecimentos. Pouco se falou que no último domingo fez um ano do vazamento de outra barragem de rejeitos, em Barcarena, no Pará; e, assim como aconteceu em Mariana, ninguém ainda foi responsabilizado e as vítimas também não receberam a devida reparação. No Brasil de hoje, os efeitos da impunidade, da corrupção e do esquecimento são ainda mais devastadores.
Em seu discurso histórico na Assembleia Nacional Constituinte, em 4 de setembro de 1987, Ailton Krenak lembrou que o modo de vida dos povos originários nunca pôs em risco “a existência sequer dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos”. Há três anos o povo Krenak, da região de Mariana, perdeu o “Watu”, como chamava o Rio Doce, e morreu um pouco junto com ele. Joenia faz parte da geração seguinte à dele – que lutou, principalmente, para que os direitos dos povos indígenas fossem reconhecidos pela Constituição de 1988. A principal briga hoje é para que essas vitórias se consolidem, mas os novos tempos impuseram outros desafios. E estes ultrapassam, em muito, as fronteiras das terras indígenas.
A deputada não se candidatou por conta própria: seu nome saiu de uma grande assembleia que definiu quais lideranças deveriam tentar a eleição. Mas, por saber que faz parte de um organismo e estar sintonizada com o tempo em que vive, tem a consciência de que não fala em nome somente dos povos indígenas: “Há uma população de minorias que se sente representada por mim ali. A política velha é formada por pessoas que só pensam em benefícios individuais. Eu vou levar valores coletivos”. Hum… tem alguém que está falando a nossa língua. Essa imensa maioria formada por minorias, que somos nós, o povo brasileiro, está muito bem representada.
A guerreira Joenia Wapichana é uma desbravadora: foi a primeira indígena a se formar em Direito no Brasil, em 1997; a primeira a ir à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington (EUA), para denunciar violações do Estado brasileiro contra os povos originários; e em 2008, a primeira a defender um caso no Supremo Tribunal Federal – a demarcação da Terra Indígena Serra Raposa do Sol, onde nasceu. No dia 14 março, ela receberá da OAB do Distrito Federal a medalha Myrthes Gomes de Campos, uma homenagem da entidade ao Dia Internacional da Mulher.
Em dezembro do ano passado, Joenia ganhou o Prêmio de Direitos Humanos da ONU, concedido, somente a cada cinco anos, desde 1968 – entre os nomes que também mereceram a honraria em outras ocasiões estão Malala Yousafzai, Martin Luther King e Nelson Mandela. A premiação e a implantação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas na 24ª Conferência do Clima da ONU (COP-24), em dezembro, na Polônia, nos dão ainda mais certeza de que ela não estará sozinha em sua luta: “Vou contar também com redes de apoiadores, pessoas que compreendem a importância dos povos indígenas no mundo”.
Preservar os rios e florestas do Brasil interessa a todos. O país tem a maior reserva de água doce do planeta e a Amazônia tem papel relevante na regulação do clima global. Em 17 de fevereiro de 2018, o Ministério Público Federal recebeu diversas denúncias da população do município paraense de Barcarena sobre um vazamento na barragem da mineradora Hydro Alunorte. Pouco depois, uma perícia do Instituto Evandro Chagas (IEC) comprovou que não só houve derrame, como a empresa ainda usava dutos clandestinos para despejar rejeitos de bauxita em cursos d’água da região. O principal rio da área, o Pará, foi contaminado. Uma CPI, instalada em agosto de 2018 pela Assembleia Legislativa estadual, reconheceu que cerca de 80 comunidades foram atingidas; segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entre 15 mil e 20 mil famílias. Nem sempre se mata um rio de uma vez, como aconteceu com o Doce e pode estar acontecendo com o Paraopeba; na maioria das vezes, ele morre aos poucos. E acaba morrendo em nossa memória, como aconteceu com a grande maioria dos rios urbanos do país.
Antes de Joenia, os indígenas tiveram somente um representante na Câmara Federal, o pioneiro Mario Juruna. Companheiro de luta de Ailton Krenak, o cacique Xavante cumpriu mandato de 1983 e 1988, quando ajudou a dar visibilidade à causa indígena e a construir políticas para a área, que seriam decisivas para os indígenas na Constituição de 1988. A ditadura quis cassar sua voz, por causa de seus discursos contra a corrupção política. Juruna foi além e, em outubro de 1984, fez história novamente, ao se tornar o primeiro parlamentar brasileiro a denunciar tentativa de suborno no Congresso – as eleições eram por via indireta e tentaram comprar seu voto para o candidato derrotado, Paulo Maluf. Ele votou em Tancredo Neves e, com seu ato, nos deu uma lição que, infelizmente, não aprendemos até hoje. Mariana, Barcarena e Brumadinho servem de prova.
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