Tratamos nossos rios como lixo. Nas grandes cidades brasileiras eles foram varridos para debaixo do tapete. Paris tem o Sena; Londres, o Tâmisa; Nova York, o Hudson. Mas na cidade que tem rio no nome nem o Carioca, gentílico dos filhos da terra, vê a luz do sol. No Rio de Janeiro praticamente foram todos para a vala. Estão mortos e enterrados em galerias subterrâneas, onde recebem esgoto quase sempre sem tratamento. Não à toa, as suas ruas se transformam em corredeiras quando chove: junta a água que cai do céu com a que corre por baixo. Em nome de que sepultamos nossos rios? Esse costume exótico é uma das maiores causas das enchentes que todo ano castigam a antiga capital do país.
“É uma chuva completamente atípica”, tirou o corpo fora o prefeito da cidade depois da última inundação. Não adianta culpar Deus, São Pedro, Iansã, Tupã ou qualquer outra entidade sobrenatural: a responsabilidade é toda nossa. E adianta menos ainda esperar que a Providência Divina resolva o problema, temos que arregaçar as mangas e buscar soluções. Até porque as mudanças climáticas já arregaçaram as delas e vêm mostrando serviço; torós como esse vão ser cada vez mais comuns. É preciso se adaptar às intempéries dos novos tempos. Cidades mundo afora já começam a exumar seus rios – ideia que tem se mostrado eficaz, e que traz ainda outras vantagens. Se existem experiências bem-sucedidas, por que não adotá-las?
O caso mais exemplar é o do Cheonggyecheon. O córrego que corta de leste a oeste Seul, capital da Coreia do Sul, foi sepultado entre o final dos anos 1950 e meados dos 1970. Desenterrado em 2008, hoje é atração turística e área de lazer dos moradores. A obra também ajudou a diminuir a temperatura e o tráfego no centro da cidade. Singapura, Madri, Los Angeles, Portland, Toronto, Milão, Cidade do México e Caracas têm projetos semelhantes. No Brasil, há um estudo para reabrir trechos canalizados dos rios Belém e Ivo, em Curitiba. “As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro inundações desastrosas”, escreveu em 1915 o cronista João do Rio. As enchentes de março e abril fazem parte de seu calendário da cidade – que, para piorar, ainda repousa por cima de aterros, que soterraram regiões alagadas ou avançaram mar adentro.
Todos os 267 rios e córregos cariocas tiveram trechos canalizados e enterrados, além de seus cursos desviados, para correrem em linha reta. “A cidade teve um planejamento urbano voltado para o transporte rodoviário individual. Os rios são vistos como obstáculos, já que carro não anda na água. Eles foram canalizados, espremidos, transformados em valões. Com isso perdemos as áreas de matas que ficavam às suas margens e que eram fundamentais para absorver o excesso de água. Não é a água que invade a rua, é a rua que invadiu a água”, diz o geógrafo Gustavo Veronesi, Coordenador Técnico do Projeto Observando os Rios, da Fundação SOS Mata Atlântica.
O atual prefeito do Rio deu sua contribuição à catástrofe mais recente, pois vem cortando a verba para drenagem urbana e contenção de encostas desde o início de seu mandato. Mas essas são medidas paliativas; é preciso investir em mudanças radicais, levando em conta as alterações do clima. “Nós temos que pôr na cabeça, de todos nós, da população, dos governantes, que esta situação será a nova normal. Não é uma situação atípica. Cada vez mais vai acontecer. Temos que preparar a sociedade para se adaptar a esses extremos climáticos”, alerta o climatologista Carlos Nobre.
Gustavo Veronesi diz que a cidade deve ser repaginada: “É preciso recuperar as margens dos rios cariocas. Podem ser implantadas ciclovias nas margens recuperadas, que ainda ajudariam na questão do transporte. E poderiam ser construídos parques lineares, que preservariam a vegetação e ainda serviriam como áreas de lazer”. Irreal? Bom, o projeto de recuperação do Cheonggyecheon custou US$ 300 milhões, mais ou menos o que se gastou na reforma do Maracanã – e já que falamos dele, ao lado do estádio jaz o rio que lhe emprestou o apelido e que costuma transbordar quando chove forte. Gol dos sul-coreanos.
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