Do que vale a Constituição na Terra plana? Em coluna no jornal “O Globo”, a juíza Andréa Pachá definiu bem o momento singular que vive nossa República. “O reduzido grupo que confronta a Ciência, estatísticas e a realidade representada por 27 mil mortos é o mesmo que rejeita a democracia, em exibições de negacionismo constitucional”, escreveu ela no texto publicado em 30 de maio. De lá para cá, pouco mudou e o número de mortos pelo novo coronavírus dobrou. “Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer”, resumiu o advogado Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em artigo publicado na “Folha de São Paulo” (30/6). A entidade entrou nesta segunda-feira (29/6) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para assegurar o direito dos povos originários a dois direitos básicos, previstos pela Constituição: segurança e saúde. Se está ruim para nós, imaginem para os que vivem longe dos olhos.
De acordo com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a taxa de mortalidade pela Covid-19 por 100 mil habitantes entre indígenas da região é 150% maior que a média brasileira. Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Apib, até o dia 27 de junho, 378 indígenas haviam morrido, 9.166 foram infectados e 112 povos, atingidos. O índice de mortalidade entre eles é de 9,6%, enquanto na população em geral fica em 5,6%. Pelo menos 30% dos territórios analisados na pesquisa têm potencial de contágio alto devido ao desmatamento crescente e à ação de grileiros e outros invasores. Mais de 20 mil garimpeiros já invadiram a Terra Yanomami, levando o vírus cada vez mais longe.
“O Executivo tem se especializado nas práticas de acusar o adversário de fazer o que ele próprio faz, e culpar o outro pelo resultado de suas omissões. Um dos sintomas do novo coronavírus foi deixar este modus operandi ainda mais evidente. Enquanto responsabiliza governadores e acusa o Judiciário de interferir em suas atribuições, cruza os braços durante a pandemia. Atribui ao STF uma tentativa de judicialização da política, quando o que acontece é que a sociedade civil está sendo obrigada cada vez mais a recorrer à Justiça para que ele cumpra os seus deveres”, resumiu Eloy. A ADPF é um recurso constitucional pouco conhecido cujo objeto é “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. Não é canja-de-galinha, mas é tiro e queda.
“As manifestações de ódio e arbítrio, a estratégia de empurrar a democracia para as cordas, se apropriando de palavras e conceitos que significam o oposto do que eles representam, só podem ser enfrentadas com racionalidade e fortalecimento institucional, ferramentas essenciais para a saúde mental e para a cidadania”, escreveu ainda Andréa Pachá. Se o governo não se mexe, a sociedade civil tem agido, sendo botando diretamente a mão na massa, como vem fazendo ONGs e associações de moradores em comunidades carentes, ou recorrendo ao Judiciário e ao Parlamento.
O pouco-caso com a pandemia e a negligência em relação aos povos tradicionais ganham manchetes nas principais publicações estrangeiras e podem levar o atual presidente onde nenhum outro jamais esteve: o Tribunal Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda. Jair Bolsonaro foi denunciado por sua gestão criminosa da pandemia. Mas Sylvia Steiner, única juíza brasileira a já ter atuado na mais importante corte internacional, acredita que ele corra o risco de ir para o banco dos réus por outra razão: “Nós temos ainda uma outra denúncia contra o presidente Bolsonaro, também no gabinete da procuradoria do TPI, mas essa se refere a políticas de extermínio da comunidade indígena por meio da destruição do meio ambiente e dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas. Essa pode, sim, configurar, em tese, uma política genocida. Alguns elementos podem levar à conclusão de que essa é uma política deliberada e proposital para limpar uma área e remover os indígenas para que a área seja utilizada para outros fins”.
O mesmo expediente foi usado pelo ex-presidente do Sudão, Omar al-Bashir: milhões de pessoas foram expulsas de Darfur, um território rico em petróleo. O tribunal aceitou a denúncia contra o tirano, afastado do poder no ano passado. Bolsonaro devia estar atento às jurisprudências.
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Saiba mais:
Negacionismo constitucional (Andréa Pachá)
Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer (Eloy Terena)
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