O coronavírus está fechando o cerco sobre os povos indígenas e eles não têm defesa contra este novo inimigo; e não estamos nos referindo a anticorpos, mas a uma ação efetiva do Estado brasileiro para protegê-los. Esta atribuição caberia à Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. No último dia 9, a covid-19 matou Alvanei Xirixan, que vivia em território Yanomami. Ele tinha apenas 15 anos e foi o primeiro indígena a contrair a doença na floresta. Não é de hoje que seu povo é ameaçado por invasores, principalmente garimpeiros. Mas além de contaminarem seus rios com mercúrio, agora estão levando a doença até ele. “É uma crise de saúde, não é uma crise de segurança. Não tem como prender o vírus”, disse Sergio Moro. O ministro parece ter levado ao pé da letra a recomendação de lavar bem as mãos para combater o vírus.
Moro nunca quis ter os indígenas sob sua tutela: “Eu não tenho interesse de ficar com a Funai”, confessou em maio do ano passado, quando o presidente Bolsonaro pretendia transferir a fundação para o Ministério da Agricultura. Mesmo subordinada à sua pasta, a Funai na prática funciona como repartição da chamada Bancada BBB, que une a armamentista (da bala), a ruralista (do boi) e a evangélica (da Bíblia). O ministro, que quando juiz chegou a agir no arrepio da lei em nome de suas convicções, hoje se omite, logo quando o seu dever exige que proteja os cidadãos brasileiros mais vulneráveis. De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 306 mil indígenas vivem na Amazônia, e há mais de 100 povos isolados na região. Segundo um estudo do Instituto Socioambiental (ISA), existem 86 territórios com presença de grupos sem contato. Este mesmo relatório aponta que o desmatamento nestas áreas cresceu 113% em 2019, sendo que no total de todas as terras indígenas o aumento foi de 80%.
O desmatamento na Amazônia Legal aumentou 51% no primeiro trimestre, batendo o recorde do período. Foram abaixo 796 km² de floresta entre janeiro e março, segundo os alertas do sistema Deter, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Desde fevereiro o ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias ocupa a chefia da Coordenação-geral de Índios Isolados da Funai. A nomeação foi contestada pelo Ministério Público Federal e entidades indigenistas, mas Moro fez ouvidos de mercador. Entre fevereiro e março, missionários foram de helicóptero para aldeias do Vale do Javari, região que concentra o maior número de povos sem contato do mundo – que desde o fim da ditadura vinha adotando uma política de proteção que evitava qualquer aproximação com essas comunidades. O contato só deve acontecer quando a iniciativa parte delas. Até outros indígenas as evitam: “Nunca os visitei a pé. Nunca nos falamos. É por isso que estou muito preocupado. Talvez em breve estarão exterminados”, alertou a liderança Yanomami Davi Kopenawa na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, no início de março.
Antes da chegada dos portugueses, calcula-se, numa estimativa bastante conservadora, que aproximadamente 4 milhões de indígenas viviam no Brasil. Em 2010, quando se realizou o último o censo do IBGE, eram cerca de 900 mil – este número já foi bem menor, mas a população voltou a crescer nas últimas décadas, na medida em que o Estado brasileiro foi se civilizando. Esse genocídio não foi movido somente pelo fio da espada, mas também por doenças que chegaram aqui a bordo das caravelas. José de Anchieta (1534-1597) conta que 30 mil tupis morreram na Bahia em poucos meses, vitimados por uma única epidemia de varíola. Diferentemente dos europeus, eles ainda não tinham desenvolvido anticorpos de qualquer espécie contra o vírus causador daquela doença. A omissão de Moro pode provocar uma tragédia ainda maior.
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