O brasileiro está desde 2013 levando suas reivindicações às ruas, mas aqueles que deveriam representá-lo têm feito ouvidos de mercador – dá para dizer até que literalmente. E essa interlocução está ficando ainda mais difícil, pois o governo quer acabar com importantes canais de comunicação com a sociedade. Só este mês, o presidente baixou decretos que extinguem entre 700 e mil colegiados, conselhos, comissões e comitês ligados à administração federal. Essas entidades, vinculadas a ministérios e secretarias, são plurais em essência, já que juntam cidadãos comuns e representantes do próprio Executivo. Não permita que cassem sua voz.
Entre as baixas estão as comissões nacionais de Política Indigenista, de Erradicação do Trabalho Escravo e a do Trabalho Infantil, e de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Quando não podem ser legalmente extintos, esses órgãos estão sendo enfraquecidos, principalmente os subordinados ao Ministério do Meio Ambiente – como é o caso do Conselho Nacional do Meio Ambiente e da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Às vezes a política é movida a forças ocultas – ou nem tanto, já que se sabe que são as grandes corporações que bancam a Frente Parlamentar Agropecuária, avalista deste governo e dos anteriores. Por isso não podemos fraquejar: defender os direitos dos mais vulneráveis não é uma das principais funções da democracia?
É bem verdade que isso não tem acontecido só no Brasil: preocupado somente em bombar a economia americana como se não houvesse amanhã, o presidente Trump continua zombando das pesquisas internacionais – e mesmo de agências científicas do próprio governo americano –, como as que indicam que o caos climático pode riscar do mapa um milhão de espécies de plantas e animais e até tornar o planeta inabitável. A mesma razão tem movido o governo brasileiro. Só que os motivos que levaram à extinção desses conselhos não se sustentam: Bolsonaro disse, por exemplo, que os cortes vão gerar “gigantesca economia”, sem apresentar nenhum número concreto. Ora, os representantes das entidades civis que participam sequer recebem salário: seu trabalho é voluntário.
Gigantesca mesmo é a importância social e ambiental dessas comissões, comprovada por um estudo do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). E até economicamente falando a pesquisa do Imaflora e do Cebrap demonstra que o papel delas não é nada desprezível. Um exemplo concreto: a abertura para acesso público da base de dados do sistema DOF (Documento de Origem Florestal) do Ibama, em 2018, estimulou a sociedade, por meio desses colegiados, a combater ao desmatamento ilegal. Isso foi extremamente positivo para o setor produtivo, já que a sua imagem diante de compradores internacionais de madeira nativa, como Estados Unidos e União Europeia, melhorou bastante – o que se refletiu em suas vendas.
Outro caso exemplar é o do Comitê Gestor de Indicadores de Eficiência Energética (CGIEE). Cabia à entidade realizar estudos e sugerir os índices de eficiência energética mínimos que deveriam ser adotados pela indústria e pelo mercado brasileiro de eletrodomésticos. Dizem os especialistas e a lógica que não há melhor forma de poupar energia do que usar aparelhos que consumam menos. Só no setor residencial – ou seja, falando diretamente ao seu bolso – a economia gerada pelo trabalho do CGIEE chega a R$ 34 bilhões. O ganho ambiental também é de crescer os olhos: apenas com proibição da comercialização de lâmpadas incandescentes, sugerida pelo comitê, o país gastou menos 22,4TWh em eletricidade. Para gerar essa quantidade de energia, seria preciso construir duas usinas nucleares do tamanho de Angra III.
Ainda é possível reverter essa situação: ministérios e secretarias têm até o dia 28 para convencer o governo que esses conselhos não devem acabar. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará em 12 de junho uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra os decretos que os extinguiram. Precisamos nos manifestar. Há uma petição circulando nas redes contra a medida que já angariou mais de 170 mil assinaturas. Já é um bom começo, mas há outros caminhos.
O coro dos descontentes continua nas ruas: cientistas do mundo inteiro reafirmam a importância da sabedoria das populações tradicionais no enfrentamento à crise ambiental; o Cacique Raoni foi buscar ajuda para os povos do Xingu na Europa, merecendo honras de chefe de Estado; a jovem sueca Greta Thunberg tem arrastado estudantes do mundo inteiro às ruas com o movimento #FridaysForFuture, exigindo mais empenho dos governantes no combate às mudanças climáticas; e, na semana passada, lá estava novamente o brasileiro se manifestando contra os cortes na educação e na pesquisa científica. Vamos aproveitar e embarcar nesse bonde, que já está andando!
Mais palavras ao vento? A gente aposta que não: o bom senso há de prevalecer e ainda vão nos dar ouvidos.
Saiba mais:
- Entenda decreto que põe fim a conselhos federais com atuação da sociedade
- Bolsonaro extingue mais de 50 conselhos e colegiados criados nos governos do PT
- Multinacionais são financiadoras ocultas da Frente Parlamentar da Agropecuária
- Empresários da soja subsidiaram campanha do líder da bancada ruralista
- Financiadores da bancada ruralista pilotam também campanha pró-agrotóxicos
- Aprovações de agrotóxicos no governo Bolsonaro beneficiam empresas estrangeiras
- Pesquisa mostra a importância da participação popular nas decisões políticas no país
- Indígenas de todas as regiões marcam presença nas manifestações pela educação
- Macron recebe líder indígena Raoni e oferece apoio para proteger o Xingu