Agressões contra o meio ambiente são casos de saúde pública. Quando tratamos mal a natureza prejudicamos a nós mesmos; e temos feito isso de variadas formas. Por exemplo: o que está acontecendo em Petrópolis (RJ) é resultado de tantos tiros no pé que, apesar de os eventos climáticos extremos terem se tornado mais frequentes com o aumento da temperatura global, o fenômeno nem precisa entrar na lista. Evidentemente, no topo está o descaso das autoridades, mas também entram nela velhos conhecidos, como o desmatamento, e o estreitamento e assoreamento de rios. E as consequências vão além das perdas materiais e das quase 200 mortes causadas pela chuva na Cidade Imperial.
Segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), entre 1988 e o início de fevereiro – antes, portanto, do desastre que se abateu sobre Petrópolis – 3.758 pessoas morreram no Brasil em deslizamentos de terra. Já o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério do Desenvolvimento Regional, informa que há 966 municípios brasileiros ameaçados por inundações e seus efeitos devastadores, e só 337 (ou 34,9%) têm sistemas de alerta. “Que Deus os acuda”, devem pensar os governantes.
Petrópolis recebeu em 2015, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), um equipamento de última geração para detectar possíveis riscos. Dois anos depois, ele foi para a manutenção, de onde nunca mais saiu. O orçamento do órgão vem secando desde a sua criação, em 2012, quando recebeu R$ 90,7 milhões: em 2020, foram R$ 20,9 milhões, e no ano passado foram R$ 17,9 milhões, o menor de sua história . Continuamos na contramão do bom senso. O novo relatório do IPCC da ONU alerta: “Sem adaptação, as mortes causadas pelas inundações aumentarão globalmente em cerca de 130% em comparação com 1976-2005, com um aquecimento de 2°C”.
Além do rastro de destruição que gera as imagens que tanto nos chocam, desastres ambientais deixam sequelas graves e duradouras, menos visíveis. “Entre os quadros frequentes nesses sobreviventes vemos estresse pós-traumático, distúrbios do sono, pesadelos e memórias repetidas, dificuldade de concentração, raiva, ansiedade, pânico e depressão”, diz Núbia Cruz, mestre em saúde pública da UFMG. De acordo com a prefeitura de Brumadinho, só em 2019, ano em que aconteceu o desastre que matou pelo menos 270 pessoas, o consumo de antidepressivos no município aumentou 56%, e o de ansiolíticos, 79%.
Os efeitos colaterais não se resumem à saúde mental: também crescem os casos de doenças graves como leptospirose, tétano, hepatite A e febre tifoide. E a água empoçada contribui com a proliferação do Aedes aegypti e do Aedes albopictus, mosquitos vetores da dengue, da zika e da chikungunya. São danos de longo prazo, difíceis de serem contabilizados, que só conhece a real extensão quem sofre na pele.
Violações contra a natureza também afrontam os direitos humanos. Ainda deixando de lado os efeitos das mudanças climáticas, a ONU lançou no último dia 15 um relatório que aponta que a poluição por plástico, lixo eletrônico e agrotóxicos – não nos esqueçamos que a Câmara acaba de aprovar o PL do Veneno – é a causa de mais de 9 milhões de mortes prematuras por ano. Ou seja, mais que a Covid-19, que matou cerca de 6 milhões de pessoas desde o início da pandemia. “As abordagens atuais para gerenciar os riscos representados pela poluição e substâncias tóxicas estão claramente fracassando, resultando em violações generalizadas do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável”, diz o relator especial da ONU David Boyd, autor do estudo.
Falando no novo coronavírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adverte: o lixo gerado pela doença também está fazendo mal à natureza. Só em 2020, o número de máscaras descartadas aumentou 9.000%. Como abrir mãos delas, neste momento, está fora de questão, mais uma vez fizemos da Terra um cobertor curto. Como sair de um sufoco sem entrar em outro? A prescrição é simples: parar de maltratar o meio ambiente. Este receituário recebeu o aval de um estudo da Universidade Harvard, recém-publicado na “Science Advances”, que reuniu cientistas de diversas áreas e economistas. De acordo com o texto, reduzir o desmatamento e acabar com o tráfico de animais silvestres poderia evitar um prejuízo de US$ 400 bilhões com o tratamento de doenças.
“Recursos para reduzir desmatamento são um investimento para prevenir futuras epidemias, mas também para mitigar ameaças já existentes, como a malária e doenças respiratórias associadas com a queima de florestas. Fazer esses investimentos em prevenção traz retornos para a saúde humana, para o ambiente e para o desenvolvimento econômico”, afirma a demógrafa brasileira Márcia Castro, professora de Harvard e uma das autoras da pesquisa. Como o desmatamento geralmente é ilegal, temos aí também um caso de polícia.
“A hipótese mais provável para o surgimento do Sars-CoV-2 é a transmissão de coronavírus de morcegos para seres humanos”, lembra Mariana Vale, cientista do Departamento de Ecologia da UFRJ e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade, que também participou do estudo. “Conservar a floresta é equilibrar o clima, proteger a água, manter a biodiversidade, assegurar a produção agrícola e evitar que doenças surjam, pois o desmatamento coloca o ser humano em contato com vírus que, de outra forma, não sairiam da mata”, completa ela. Ou seja: precisamos urgentemente de uma vacina contra a ganância para as pessoas mais resistentes a essa doença, que vitima até quem é imune a ela.
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