Quer notícia ambiental boa em 2020? Vai pra Tasmânia! A ilha australiana hoje é 100% movida a energia renovável e os tasmanianos realizaram o feito dois anos antes do previsto. Dá até uma certa inveja, depois de um ano que, para nós, brasileiros, foi como dar uma volta num trem fantasma. Na primeira curva, descaso público com o coronavírus; em seguida, Pantanal reduzido a cinzas; logo adiante, 800 famílias quilombolas ameaçadas de despejo em plena pandemia no Maranhão; daí para frente, recordes de desmatamento e de emissões de gases do efeito estufa em zigue-zague até o grand finale: a exclusão do Brasil da Cúpula da Ambição Climática da ONU. Deu para ouvir daí a gargalhada assustadora de filme de terror?
São raros os anos como este em que todos têm, pelo menos, uma história triste para contar. Os povos originários são um exemplo. Eles viram a invasão às suas terras aumentar 135% e a Covid-19 já lhes tomou quase 900 vidas. Entre elas, as de lideranças históricas como Nelson Rikbaktsa, Dionito Macuxi, Amâncio Munduruku, Zé Carlos Arara e Aritana Yawalapiti.
Porém, apesar de doído, 2020 trouxe também conquistas importantes. A vitória de maior destaque aconteceu em 5 de agosto, quando o Supremo Tribunal Federal acatou, por unanimidade, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A medida solicitava à mais alta corte do país que determinasse o cumprimento por parte do governo federal de um dever constitucional: cuidar dos indígenas durante a pandemia. Sim, foi preciso pedir – caso você não tenha acreditado.
Como num jogo de futebol em que o placar é menos relevante do que o entrosamento do time, o mais importante neste caso não foi o resultado em si, mas o reconhecimento oficial da representatividade da Apib perante o Estado. “Durante muito tempo, os povos indígenas não foram tidos como sujeitos de direitos, não podiam falar por si só, não podiam acessar o judiciário em nome próprio; sempre tinham que depender de alguém. Então, isto tem um significado muito grande na superação da tutela, na superação da colonialidade do direito e também na reafirmação desse sujeito de direito que são os povos indígenas”, explica Eloy Terena, assessor jurídico da Apib. E os feitos da entidade não pararam por aí.
Em um caso único no mundo, a articulação está contando os casos de mortes e contaminações entre indígenas pela Covid-19. Afinal, a doença não é (nem nunca foi) uma gripezinha. Tanto trabalho tem resultado em um reconhecimento cada vez maior, não só dentro – conforme mostra a decisão do STF – como fora do Brasil. Em outubro, a Apib ganhou o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, do Instituto de Estudos Políticos de Washington, que existe há 44 anos. O que mais pesou na escolha foi outro gol de placa: a Jornada Sangue Indígena – Nenhuma Gota a Mais, campanha que percorreu 12 países europeus em 2019, denunciando violações de direitos cometidas pelo governo ou com seu incentivo.
É um problema de 500 anos, que os indígenas denunciam cada vez mais e melhor, e que todos nós precisamos resolver. “Nossa luta, por extensão, é por todas as pessoas que vivem neste planeta durante este tempo de crise climática”, disse Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, em agradecimento pela honraria concedida à entidade. Este ano, Sonia também levou sozinha o Prêmio Alceu Amoroso Lima de Direitos Humanos, concedido pela Universidade Cândido Mendes.
Outra que tem sido ouvida com muita atenção por esse mundão afora é Alessandra Korap Munduruku. Ela levou o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, que existe há 37 anos. Seguindo a máxima do ex-presidente americano que dá nome a homenagem, ela não se perguntou o que o Brasil podia fazer por ela, mas sim o que ela podia fazer pelo Brasil. “Como liderança, Alessandra defende os direitos indígenas, principalmente na luta pela demarcação dos territórios indígenas e contra grandes projetos que afetam terras indígenas e territórios tradicionais na região do Tapajós”, diz a justificativa da premiação. Nós, da Gota, ficamos muito felizes, já que Alessandra foi uma das inspirações para campanha “Em Nome de Quê?”, iniciativa que reuniu indígenas e demais brasileiros na luta pelo meio ambiente.
É claro que nem tudo são prêmios – ou flores, se preferir. Enquanto o resto do mundo entende perfeitamente o recado dos povos tradicionais, o atual mandatário da nação prefere ignorá-lo. É um comportamento menos parecido com o da ema, que o renegou no Alvorada, e mais similar ao de outra ave, o avestruz. Nada presidencial, esta conduta pode gerar consequências — como, aliás, já aconteceu. Este mês, a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia deu o seu O.K. para uma investigação inicial contra Bolsonaro por denúncias de violações contra o meio ambiente e os indígenas brasileiros. Nunca um presidente brasileiro tinha chegado a este estágio. E a primeira vez, como dizem por aí, a gente nunca esquece.
Brincadeiras à parte, é certo que 2020 será menos lembrado pelas coisas boas do que pelas péssimas lembranças que deixa. Mas nem tudo que aconteceu nos últimos 12 meses precisa ir direto para a lata de lixo. Veja, por exemplo, o caso do nosso guru Ailton Krenak, escolhido em setembro “intelectual do ano” pelo prêmio Juca Pato, da União Brasileira de Escritores. Com a honraria, ele se junta a nomes como Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e Dom Paulo Evaristo Arns. Todos pensadores com uma ideia de Brasil muito diferente das que temos hoje e que não devemos desistir de tirar do papel.
Com Krenak, a sabedoria dos povos originários está chegando a muito mais gente. São pessoas que têm entrado em contato com valores importantes, como a preservação do meio ambiente. “A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”, diz o escritor. Por sorte, há sempre uma nova história a ser contada e cada ano novo é uma oportunidade para recomeçarmos. Que, em 2021, em vez de um filme de terror, escrevamos uma trama repleta de heróis, transformações e com final feliz. Para nós e para o planeta.
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