A Unidos do Ruralismo tem em mãos uma ala quase imbatível, a maioria do Congresso mais antivida que já tivemos. Em 21 de setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por nove votos a dois, a inconstitucionalidade da tese, que põe barreiras quase intransponíveis para que novos territórios originários sejam homologados – e ainda ameaça muitos já demarcados. A despeito de a maior Corte do país considerá-la inconstitucional, os ruralistas aprovaram, ainda em setembro, o PL 2.903/2023, que institui o marco temporal.
O projeto foi vetado pelo presidente Lula em outubro, mas os congressistas derrubaram o veto. Seu nome agora é Lei 14.701/2023. Coube a uma deputada federal indígena liderar uma nova luta no Supremo, agora pela inconstitucionalidade da lei. Inacreditavelmente, o judiciário terá que julgar novamente um caso que já deu por resolvido. Anotem na agenda: o STF julga este ano duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) e enfrenta a pressão dos lobbies do agronegócio e da mineração. O relator será Gilmar Mendes.
Também dormita na Câmara o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, cujo objetivo é retirar o Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na prática, ela liberaria geral a mineração, o agronegócio e a construção de obras de impacto em terras indígenas. Ou seja, mais do mesmo. A Escola de Samba Salgueiro levou à avenida o enredo Hutukara, que conta a história da luta Yanomami. Sim, luta. O próprio Davi Kopenawa, uma de suas mais proeminentes lideranças, pediu que a escola não tratasse os Yanomami como coitadinhos e, sim, como são de fato: guerreiros. A invasão de sua terra por garimpeiros remonta aos anos 1980, mas eles vêm resistindo bravamente.
Só que já passou da hora de encontrar uma solução rápida e definitiva. No início do ano, o governo federal anunciou que vai investir R$ 1,2 bilhão numa operação permanente contra o garimpo ilegal. É preciso que os povos indígenas participem da coordenação dessas ações e fiscalizem para onde vai esse dinheiro. Sabe-se que membros das Forças Armadas que têm simpatia pelo garimpo sabotaram missões no território – isso sem contar os políticos da região, que têm políticas francamente anti-indígenas. É agente da “abin paralela” pra todo lado.
Os garimpeiros não trabalham para si próprios, mas para muitos dos ocupantes das cadeiras do Congresso ou empresários que os apoiam financeiramente – e este ano tem eleições municipais. É preciso escolher candidatos comprometidos com a defesa da vida e ficar nos seus pés depois de eleitos. Cada anúncio de obra do PAC na Amazônia merece atenção redobrada. Uma estrada asfaltada, hidrovias, pistas de pouso e ferrovias serviriam para facilitar a vida dos invasores e para desviar dinheiro que poderia desenvolver a bioeconomia e ações de conservação. Tapetes vermelhos para o crime por cima do verde.
Outro desafio que não pode esperar mais um Carnaval é o desmatamento no Cerrado. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), enquanto houve uma redução de 50% do desmatamento na Amazônia, no segundo maior bioma do Brasil ele cresceu 43%. Foram abaixo 7,8 mil km² de vegetação nativa em 2023. Não tem tanto segredo porque a causa é basicamente uma: o avanço sem trégua do monopólio da soja.
A solução mais prática e óbvia nos leva ao início do artigo: o aumento de áreas protegidas. A Amazônia tem mais de 40% de seu território coberto, enquanto no Cerrado essa proporção fica entre 12% e 14%. É preciso demarcar mais terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. E, claro, cortar os subsídios dos desmatadores. A marchinha favorita dessa turma é “Me dá um dinheiro aí”.
Como diz o pensador acadêmico da ABL Ailton Krenak, “até quando as pessoas vão ficar olhando o povo indígena defender sozinho a floresta?”. O escritor também disse que não quer “salvar os indígenas, mas evitar a extinção da espécie humana”. Tem enredo melhor que esse? É hora de a sociedade civil puxar esse samba.
Saiba mais:
ACNUDH manifesta-se contra retirada do Brasil da Convenção 169 da OIT
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/acnudh-manifesta-se-contra-retirada-do-brasil-da-convencao-169-da-oit
Não adianta chorar sobre o cerrado derrubado
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/01/nao-adianta-chorar-sobre-o-cerrado-derrubado.shtml
Congresso derruba veto de Lula ao marco temporal das terras indígenas
https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2023/12/congresso-derruba-veto-de-lula-ao-marco-temporal-das-terras-indigenas
Marco temporal volta ao STF com três ações diferentes e Gilmar Mendes relator; entenda
https://www.brasildefato.com.br/2024/01/04/marco-temporal-volta-ao-stf-com-tres-acoes-diferentes-e-gilmar-mendes-relator-entenda
PP, Republicanos e PL acionam o STF para validar o marco temporal de terras indígenas