Há mais de uma forma de cometer genocídio; às vezes, nem é questão de matar: basta não deixar nascer. “A gente não quer ter mais filhos, porque temos mercúrio no sangue. Nós estamos contaminadas”, lamentou na última sexta-feira a cineasta indígena Aldira Akai Munduruku. A invasão de balsas no Rio Madeira na semana passada é uma imagem impactante, mas somente a ponta do iceberg. O garimpo em terras indígenas (TIs), por exemplo, aumentou 500% em dez anos. E, segundo estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), todos os moradores da TI Sawré Muybu, no Pará, foram afetados, sendo que 60% deles têm taxas do metal no organismo acima do limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O mercúrio passa de mãe para filho e pode levar à malformação do feto ou até à morte. Um extermínio sem violência aparente. Lento, invisível, doloroso, cruel.
O garimpo ilegal na TI Yanomami também vem aumentando em velocidade assustadora desde o início de 2021. Só no primeiro trimestre o desmatamento foi o equivalente a cerca de 10% de toda a destruição da última década. A continuar nessa batida, este ano pode vir abaixo o correspondente à metade de toda área desmatada até 2019. No mês passado, duas crianças morreram, sugadas por uma draga de mineração. Um estudo realizado pela Fiocruz constatou presença de mercúrio em 56% das mulheres e crianças Yanomami da região de Maturacá, no Amazonas. A fundação foi proibida pela Funai de fazer uma nova pesquisa este mês.
A Constituição tem bem mais que quatro linhas e quais o governo atual escolheu respeitar é um grande mistério. Só de ações de inconstitucionalidade ajuizadas por partidos políticos no Supremo Tribunal Federal (STF), Jair Bolsonaro já passou dos 180 em dois anos de mandato — deixando na poeira seus antecessores, Michel Temer , Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva que, juntos, responderam por 144. Com seus 250 artigos, a Cidadã é a segunda maior do mundo, perdendo apenas para a indiana. O que o presidente não tenta mudar, por meio de medidas provisórias e decretos, ele simplesmente ignora. Os direitos específicos dos povos originários mereceram um capítulo à parte (“Dos Índios”), que ocupa pouco mais de dez linhas.
É negligência que chama?
Não vamos esquecer que foi preciso que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrasse com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF para que o governo ao menos simulasse proteger os povos originários durante a pandemia de Covid-19. Tá lá na Constituição, no Decreto 3.156, de 27 de agosto de 1998: “a atenção à saúde indígena é dever da União”. Mesmo sob a ameaça do novo coronavírus, o orçamento para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) despencou, passando de R$ 1,1 milhão em 2018 para R$ 494 mil em 2019 e para R$ 200 mil no ano passado. É negligência que chama?
Enquanto tenta passar no Congresso o Projeto de Lei 191/20, que regulamentaria a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em TIs, Bolsonaro faz vista grossa para o artigo 231, que diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Por sua vez, as ações e omissões do governo atraem para as terras indígenas toda sorte de aventureiro — até mesmo a milícia e o narcotráfico podem estar envolvidos. Todos os males das grandes cidades parecem estar migrando para a floresta. Até quando vão continuar a esticar a corda do negacionismo? Além de milhares de satélites no espaço, existe uma coisa chamada Lei de Acesso à Informação. Será que depois do vexame da COP o governo brasileiro ainda não se tocou que não há mais como esconder cadáveres no armário?
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