Guardiões do futuro

abril 2021

Os brasileiros costumam reverenciar com entusiasmo os japoneses, apesar de todos os contrastes culturais – ou por causa deles. Admiramos– quando não adotamos –suas tradições seculares e a forma como elas convivem harmoniosamente com a mais moderna tecnologia. Suas seriedade, disciplina e capacidade de inovação: se o Japão diz que vai fazer Olimpíada este ano, ninguém duvida; e basta o produto ser made in Japan para merecer confiança. Essa consideração é mútua, não à toa o Brasil tem a maior comunidade japonesa fora do Japão. Mas nem sempre foi assim: o brasileiro já achou que comer peixe cru era inconcebível e caçoou do jeito encabulado deles. Felizmente, a informação tem o poder de transformar preconceito em admiração. O mesmo está acontecendo em relação aos povos indígenas, por motivos parecidos. E eles ainda reservam muitas revelações. 

O Dia do Índio é uma ótima ocasião para relembrar essa construção de décadas. O movimento indígena brasileiro começa a se organizar em meados dos anos 1970, pressionado pela política expansionista agressiva da ditadura. Foi um ataque em massa na única região ainda praticamente intocada do território brasileiro e do mundo, a Amazônia. Essa mobilização ganha maturidade durante a Constituinte de 1988. Eles se fizeram ouvir sem intermediários, por meio de uma emenda popular assinada pela União das Nações Indígenas. O discurso de Ailton Krenak no Congresso entrou para a História, assim como nomes como Mário Juruna (cacique Xavante e o primeiro deputado federal indígena), Álvaro Tucano, Ângelo Kretã, Marçal de Souza, Raoni Mentuktire, Paulinho Paiakan e Domingos Veríssimo Terena. Os povos indígenas não só asseguraram o direito às suas terras, como à cidadania plena. 

Não é novidade para ninguém que esses direitos conquistados precisem ser defendidos até hoje. Isso só fortaleceu o movimento, que hoje mistura a experiência dos pioneiros com o conhecimento adquirido pelos mais jovens nas universidades. Hoje, os indígenas têm voz em importantes fóruns mundiais, como a ONU e a OEA, e a primeira mulher a representá-los na Câmara Federal, a deputada Joênia Wapichana (Rede). Estas três décadas também foram o período de criação, crescimento e amadurecimento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), fundada no dia 19 de abril de 1989. Seu nascimento é resultado do processo de luta política dos povos indígenas pelo reconhecimento e exercício de seus direitos, em um cenário de transformações sociais e políticas ocorridas no Brasil após a assinatura da Constituição Cidadã de 1988. 

A Coiab é a maior organização indígena regional do Brasil. Ela é formada pela união de associações locais, federações regionais, organizações de mulheres, professores e estudantes indígenas. São 64 regiões de base espalhadas pelos nove estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Mas, espera! Ela é a maior, sim, mas é só uma das sete organizações regionais que compõem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ainda tem a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), o Conselho do Povo Terena, a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), a Grande Assembléia do povo Guarani (AtyGuasu), e a Comissão Guarani Yvyrupa. Ufa! Tanta gente organizada e coordenada, que cobre aldeias de todos os estados do país e tem desempenhado um papel fundamental durante a pandemia da Covid-19 – alimentando milhares de famílias, reforçando barreiras sanitárias e distribuindo equipamentos de segurança para profissionais de saúde. 

A Apib foi criada em 2005, no segundo Acampamento Terra Livre (ATL). No ano passado, ganhou o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, concedido pelo Instituto de Estudos Políticos de Washington, e teve sua representatividade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Até 2020, o ATL costumava ser literalmente um grande acampamento nos gramados de Brasília, onde milhares de lideranças de todo o país – e até do exterior se reuniam uma vez ao ano. A pandemia fez o evento migrar para plataformas virtuais, mas os povos permanecem unidos, agora através das telas. E a programação desse ano está intensa, viu? Está durando mês inteiro! 

Os indígenas não precisaram que um teórico lhes dissesse que culturas são dinâmicas. Eles assimilam conhecimento sem nenhum preconceito e têm usado a tecnologia moderna a seu favor. A gente só teria a ganhar se pensasse assim também. O Dia do Índio também é um bom momento para frisar que a sabedoria deles sempre foi de vanguarda – e, hoje, mais necessária do que nunca.“Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, canta Caetano Veloso em “Um índio”. Hoje, a ciência, a medicina e até o design buscam inspiração na natureza. Não existe tecnologia mais avançada. O segredo dos povos indígenas é se reconhecerem parte desse grande mecanismo.  

Em 2018, arqueólogos do Brasil e do Reino Unido descobriram vestígios de uma civilização amazônica. Em suas cidadelas, construídas séculos antes da chegada dos europeus, viviam até 1 milhão de pessoas. Restaram poucos resquícios, justamente porque era uma cultura biodegradável. Somente 3% dos ecossistemas do mundo permanecem intactos, segundo um estudo recém-divulgado da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Entre as áreas que conservam a biodiversidade há 500 anos, boa parte está em terras indígenas. Num mundo à beira do colapso, ninguém tem mais know-how em sobrevivência do que eles. Os povos indígenas não só mantiveram praticamente intacta a maior floresta tropical do mundo por milhares de anos, como ajudaram a cultivá-la, e resistiram a 500 anos de perseguições. Os indígenas guardam o segredo de nossa sobrevivência. 

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Saiba mais: 

A programação do ATL 2021

Só 2% a 3% do planeta permanece ecologicamente intacto

Apenas 3% dos ecossistemas do mundo permanecem intactos, aponta estudo

Apenas 3% das áreas terrestres do planeta estão intactas, aponta estudo

Cacique Raoni manda recado a Joe Biden e pede que ignore Bolsonaro, presidente ruim

Globo exibe “Falas da Terra” com depoimentos de povos indígenas

Um estudo de 2018 revelou detalhes, até então desconhecidos, sobre culturas complexas que foram ofuscadas na História

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