Sob fogo cerrado. O próprio vice-presidente Hamilton Mourão, que ora preside o recém-recriado Conselho Nacional da Amazônia, reconhece que o combate ao desmatamento começou tarde e que o Ibama, debilitado, não dá conta de fiscalizar e proteger a região. A devastação recorde é prenúncio de uma temporada de queimadas catastrófica. O ex-general, porém, parece acreditar que o Exército dá conta do problema; só que é bem mais provável que a instituição saia com sua imagem queimada. Mourão sequer pode dar a justificativa de que não conhece a região, pois foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira, entre 2006 e 2008. Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), nasceu e vive na cidade mais indígena do país e a terceira mais atingida pelo coronavírus do Amazonas. Ninguém melhor do que quem está sentindo na pele as consequências dessa negligência para descrever a tragédia que se anuncia. Indígenas e Amazônia são uma coisa só. Por isso, no Dia de Proteção às Florestas (17/7), abrimos espaço para ela neste artigo, que também foi publicado na “Folha de São Paulo”. Fizemos ainda uma lista de reportagens recentes que vão ajudar o leitor a entender que o problema não é só dos povos da floresta. Ao fazer a opção de proteger a economia do país em vez de vidas humanas durante a pandemia, o governo pode afundar o país ainda mais profundamente na crise.
Somos os primeiros brasileiros, povos originários dessa terra!
Nara Baré, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
Quando general da ativa, o vice-presidente Hamilton Mourão foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, em São Gabriel da Cachoeira (de 2006 a 2008), onde eu nasci e vivo até hoje. Ele certamente deve estar ciente de que o coronavírus ameaça levar a cidade para UTI: até a manhã do dia 14, o boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas registrava 2.982 casos confirmados e 47 mortes; o município é o terceiro mais atingido do estado. Mais de 20 povos vivem em São Gabriel da Cachoeira, incluindo os Baré. A cidade serve como um microcosmo da situação atual da população indígena, a mais atingida, percentualmente, do Brasil. Já choramos mais de 500 mortos e passamos da marca dos 15 mil infectados. Isso não acontece por acaso, é resultado da política anti-indígena do governo.
Recentemente Mourão fez declarações indelicadas a nosso respeito. Apesar disso, sabemos que conhece a região e suas peculiaridades, é filho de amazonenses e se identificou na campanha como descendente de indígenas. Também ficamos favoravelmente surpreendidos quando ele admitiu publicamente que o combate ao desmatamento começou tarde e que o Ibama está desmantelado. Por isso, quando assumiu a presidência do recriado Conselho Nacional da Amazônia vimos uma possibilidade de diálogo, algo que nos vem sendo sistematicamente negado pela Presidência e pelo Ministério do Meio Ambiente – cujo titular, por sinal, nunca havia pisado na Amazônia antes de assumir.
O primeiro sinal de que o governo não estava disposto a ouvir opiniões diferentes foi justamente a extinção ou a reconfiguração de conselhos e comissões ambientais que contavam com a participação de representantes da sociedade civil – entre estes, povos indígenas, cientistas, ambientalistas. Quando da recriação do conselho, o órgão foi tomado por militares. Nenhum indígena senta à sua mesa para discutir estratégias. O Exército – que, não há como negar, está umbilicalmente ligado ao governo – conhece a Amazônia e poderia usar este conhecimento, adquirido junto a nós, para ajudar a preservá-la, mais o que vemos é o inverso. Mas desde o início da pandemia viemos alertando o governo, em vão, sobre o aumento do desmatamento e da invasão de nossas terras por garimpeiros, madeireiros, grileiros entre outros e a necessidade de nos proteger e preservar nossas culturas. Só que o discurso do Executivo tem estimulado ainda mais invasões. Isso tem se intensificados nos últimos dois anos. Exigimos a retirada imediata de todos os invasores no entorno e dentro dos territórios indígenas.
Não foi com surpresa que recebemos a notícia de que as reuniões que Mourão teve com investidores estrangeiros não chegaram ao resultado desejado pelo governo. A pandemia tem levado a discussão sobre a urgência da adoção de um modelo econômico mais sustentável e o momento requer transparência, seriedade e não omissão e subnotificações. Não há mais como varrer a destruição da Amazônia para baixo do tapete, há mais de 5 mil satélites em órbita da Terra; o celular também é acessível a todos, e desrespeitos aos direitos humanos e crimes ambientais podem ser transmitidos ao vivo por qualquer um. Atos irresponsáveis como a excursão promovida pelos ministérios da Defesa e da Saúde a terras indígenas, atropelando os protocolos da pandemia, chegam aos jornais e às TVs do mundo inteiro. O Brasil pode sofrer sérias sanções econômicas, que agravarão mais a crise.
A questão climática pôs a Amazônia no centro do mundo. E a maior floresta tropical do mundo não é obra somente da natureza, mas também um legado dos povos indígena, como indicam descobertas arqueológicas recentes. Se há alguém que sabe apontar os caminhos do desenvolvimento sustentável da floresta amazônica é quem a cultivou e continua cuidando. A comunidade internacional sabe disso e, por isso, impõe a nossa segurança como cláusula contratual. Para eles não é só uma questão humanitária, mas de sobrevivência. Então oferecemos ao governo as respostas para salvar a Amazônia. Primeiro é preciso entender que nós, povos indígenas, somos parte indissociável da Amazônia, do nosso território. Nosso território é nosso corpo e nosso espírito. Se nós somos a Amazônia, para preservá-la é preciso preservar nossas vidas. Se tem alguém que quer que o Brasil prospere somos nós: com respeito às especificidades, aos biomas e aos nossos diretos. Somos os primeiros brasileiros, povos originários dessa terra!
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Para entender a situação atual da Amazônia e dos povos da floresta:
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