Ao que tudo indica, o Brasil vai entrar dividido como nunca em 2019. Convém repensar essa atitude. O novo governo propõe mudanças radicais; cabe à sociedade lhe dar ou não o aval para todas elas. Para isso, é preciso que estejamos novamente juntos. Votar num candidato não significa lhe dar carta branca para fazer o que bem entende; por outro lado, ninguém deve jogar a toalha porque perdeu uma eleição. O novo presidente precisa ser lembrado de que terá que governar para todos. Governos se adaptam às circunstâncias; estamos todos na mesma canoa e todo mundo quer que ela continue na superfície.
Vamos fortalecer ainda mais a nossa rede para difundir informação e dar voz às nossas reivindicações. Nem todos têm pleno conhecimento das consequências das mudanças anunciadas. Há o projeto de retomar a construção de hidrelétricas na Amazônia, mesmo antes que se termine de contabilizar os prejuízos de Belo Monte. Em nome de quê? É bom lembrar que, além dos danos socioambientais que causou, a usina até agora gerou mais propina do que energia elétrica. E que para se atirar uma lança, é preciso antes lhe dar um impulso para trás. É o passado que impulsiona o futuro; evoluímos com o que aprendemos com nossos erros e acertos. Isso vale tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade. O futuro do Brasil também depende do conhecimento de seus primeiros habitantes.
Ninguém conhece melhor esta terra do que os povos originários. E eles não têm lições para nos ensinar apenas sobre preservação, mas também na forma de nos relacionarmos – os Ye’kwana, por exemplo, criaram um projeto sustentável para tirar seus jovens das garras do garimpo ilegal. Os indígenas tiveram a sabedoria de se apropriar de conhecimentos e de tecnologias criados por nós, sem abrir mão de suas tradições. Devíamos seguir o exemplo deles. O mundo já começa a reconhecer nos seus saberes tradicionais um guia mais seguro para o futuro. Na 24ª Conferência do Clima da ONU (COP-24), foi aprovada a implantação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas. Com isso, eles terão mais voz no debate sobre as mudanças climáticas e no desenvolvimento de políticas e ações para amenizar seus efeitos. Não levar em consideração o conhecimento adquirido é marcar passo ou dar marcha à ré. Vamos em frente?
“Os povos indígenas precisam ser parte da solução para as mudanças climáticas. Vocês têm o conhecimento tradicional dos seus antepassados. O valor desse conhecimento simplesmente não pode, e não deve ser subestimado. Vocês são também essenciais na busca por soluções hoje e no futuro. O Acordo de Paris reconhece isso. Reconhece seu papel na construção de um mundo que é resiliente diante dos impactos climáticos”, disse em Katowice, na Polônia, a secretária-executiva da COP-24, Patrícia Espinosa. A Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas foi idealizada em 2015, durante a COP-21, mas desde a Rio-92 o movimento indígena vem se esforçando para vincular o debate climático à garantia do respeito aos direitos humanos. A ideia é que funcione como uma espécie de Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) indígena. “Quando os dados científicos começaram a mostrar que os conhecimentos tradicionais são validados, houve um outro olhar”, disse Nara Baré, coordenadora geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
No Brasil, já existem pequenos projetos de desenvolvimento sustentável criados por indígenas à espera de serem replicados ou ampliados. O garimpo ilegal infesta as águas do Rio Uraricoera, em Roraima, na Terra Indígena Yanomani, e tenta aliciar jovens do povo Ye’kwana. Foi então que a Associação Wanasseduume Ye’kwana, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), criou um projeto para lhes oferecer uma alternativa sustentável: a exploração de uma espécie de cacau endêmico para a produção de chocolate. A guloseima Ye’kwana tem gosto de floresta e rio preservados. Quer sabor melhor?
Comunidades indígenas também dão lição de como a convivência pacífica pode ser, literalmente, frutífera. A Associação Wyty Catë das Comunidades Timbira do Maranhão e Tocantins, criada por 10 aldeias de cinco povos Timbira (Krahô, Apinajé, Krikati, Gavião-Pykobjê e Canela-Apãnjekra), juntou-se a pequenos produtores rurais no projeto Frutos do Cerrado. Usando de técnicas tradicionais de plantio e de manejo orgânico do solo, sem o uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos, a parceria tem como objetivo principal a preservação do Cerrado, mas também é fonte de renda para a população local.
Outra aula de união em torno do bem comum: no mês passado, na região do Rio Negro, 23 povos realizaram uma assembleia-geral, com mais de 300 pessoas, para aprovar o seu Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) coletivo. Assim, a área de 13,5 milhões de hectares, que já é a mais preservada da Amazônia, ganha mais um instrumento de diálogo com o poder público e a sociedade civil para garantir sua integridade. E olha que os envolvidos na construção do PGTA Wasu, como ficou conhecido, falavam 16 idiomas diferentes. “Wasu” quer dizer “grande” em Nheengatu, a língua geral da Amazônia. Esses modelos de desenvolvimento não predatórios e de trabalho coletivo são algumas das melhores lições que as populações tradicionais têm a oferecer ao Brasil. Cabe ao país prestar (mais) atenção nas aulas. Nossa sobrevivência está em jogo. É como disse Ailton Krenak: “Resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”.
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