Por Vinícius Leal*
Não é coisa de cinema, muito menos a lei da selva: a luta para se manter vivo na Amazônia é uma rotina real de quem habita a região e não é natural dela. Seja no meio da floresta, na beira do rio ou nas periferias das grandes cidades, cresce o acirramento das disputas pelo controle desses territórios, tomados à força por grupos criminosos ligados ao garimpo, grilagem, narcotráfico, pesca e extração de madeira clandestinas. Violência que vem aumentando a cada ano – das 30 cidades mais violentas do país, dez estão na região amazônica – e que, somada à desigualdade e ao abandono estatal, ocupa os noticiários ao redor do mundo. A dura realidade está se impondo.
Mas esse não é o único espaço que as histórias amazônidas estão conquistando: elas também vêm ganhando notoriedade na produção audiovisual e ocupando um lugar de prestígio no cinema brasileiro e internacional, pondo em evidência não só a narrativa indígena, como alçando os próprios povos tradicionais à condição de diretores, atores, roteiristas e produtores. Olhares e fazeres que ajudam a retratar uma realidade agonizante e febril, mas que também se apresenta resiliente e poética.
“A última floresta” (2021), documentário com elementos de ficção dirigido por Luiz Bolognesi, que assina o roteiro junto com a liderança Yanomami Davi Kopenawa, retrata bem esse cenário: um grupo de indígenas isolados tenta manter vivas suas tradições espirituais enquanto enfrenta e expulsa garimpeiros de seu território. Já disponível na plataforma de streaming Netflix e premiada em diversos festivais de cinema, incluindo os de Berlim e Seul, e no 21º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, a obra retrata o cotidiano daquele povo no Brasil atual: segundo o último levantamento da Hutukara Associação Yanomami, divulgado em abril, há mais de 20 mil garimpeiros atuando em seu território, situado entre o Amazonas e Roraima, onde vivem cerca de 26 mil indígenas. O ritmo desacelerado do roteiro transmite bem a energia de quem vive dentro da floresta, um leve contraste diante da impactante realidade de fome, miséria e doenças causadas pela tragédia humana da busca incessante por ouro nos garimpos, financiados por grupos de empresários que fornecem aeronaves, combustível e constroem pistas de pouso ilegais – e movimentadíssimas – no meio da mata.
Outra obra cinematográfica que escancara essa Amazônia violentada pelo crime organizado é “O Território” (2022), longa documental que mostra os desafios enfrentados pelos Uru-Eu-Wau-Wau para se manterem vivos em suas terras ancestrais, no estado de Rondônia. Premiado em Sundance e em mais de 10 festivais pelo mundo, o filme, dirigido pelo norte-americano Alex Pritz e com produção executiva de Txai Suruí, jovem indígena que denunciou as violências contra seu povo na COP26, tem previsão de estreia no Brasil em setembro. “O Território” mostra como os próprios Uru-Eu-Wau-Wau arriscam suas vidas num grupo de monitoramento e vigilância constante da floresta para proteger o bioma e suas aldeias de grileiros e invasores, como os que mataram Ari Uru-Eu-Wau-Wau, espancado até a morte em abril de 2020, com destaque para os atores estreantes Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau e Neidinha Suruí, lideranças indígenas da região.
Já “Noites alienígenas” (2022) acabou de ganhar nada menos que seis Kikitos, o prêmio máximo do Festival de Cinema de Gramado, inclusive o de melhor filme. O longa de ficção acreano foi o grande destaque da edição especial de 50 anos do evento, o primeiro presencial depois do início da pandemia, e que homenageou o ator e ativista socioambiental Marcos Palmeira. Dirigido por Sérgio de Carvalho, “Noites alienígenas” traz à cena essa “nova Amazônia urbana”, com facções criminosas disputando “na bala” o comando de bairros e cooptando jovens para se tornarem soldados do narcotráfico – uma realidade já vivida por comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas espalhadas por territórios localizados nas fronteiras do Brasil com o Peru e a Colômbia e, também, nos municípios do interior e nas periferias da Amazônia.
Com estreia comercial prevista para 2023 e um elenco que uniu o veterano Chico Díaz a atores da região, como o indígena amazonense Adanilo e os acreanos Gleici Damasceno e Gabriel Knoxx, o filme conta a história de três jovens na periferia de Rio Branco, capital do Acre, que têm suas vidas impactadas pelo avanço do narcotráfico e pela atuação conflituosa de organizações pelo domínio de territórios para o comércio e o escoamento de drogas. A história, inspirada num livro homônimo escrito também por Sérgio de Carvalho em 2011, precisou ser adaptada para a atualidade, bem mais violenta que há dez anos, e que brinca com os limites entre cidade e floresta.
Já “Pureza” (2020), baseado numa história real, dirigido por Renato Barbieri e com Dira Paes interpretando a protagonista, retrata a luta de Pureza Lopes Loyola. Ela deixa Bacabal, no Maranhão, em 1993, e se embrenha no meio da Amazônia profunda para resgatar o filho de uma situação análoga ao trabalho escravo, num garimpo no Pará. Hoje considerada uma heroína abolicionista, cuja atuação libertou mais de 57 mil pessoas de condições análogas à escravidão, Pureza desnuda uma realidade ainda comum para quem decide ganhar a vida em campos de mineração ilegal no país. O filme, vencedor de 28 prêmios nacionais e internacionais, e disponível no streaming da Globoplay, também entra no rol dessa nova cinematografia que expõe uma Amazônia violenta e sem lei.
Outra produção audiovisual que retrata a ameaça do garimpo na Amazônia é o documentário “Amazônia: a nova Minamata”, que tem previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano, mas que teve uma exibição prévia de um corte exclusivo no histórico Acampamento Terra Livre (ATL) deste ano, que reuniu mais de 8 mil indígenas em Brasília. Tendo como pano de fundo a luta do povo Munduruku, no Pará, contra o garimpo ilegal, o documentário do diretor Jorge Bodanzky acompanha a atuação de médicos e pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre a crise de saúde pública na população indígena, causada pela contaminação por mercúrio de garimpo ilegal na região do Rio Tapajós.
O documentário de Bodanzky traça um paralelo entre a realidade amazônica e a catastrófica contaminação por metais pesados ocorrida na década de 1950 na cidade de Minamata, no Japão. A intoxicação de mercúrio no solo, em rios e em peixes pela busca do ouro na Amazônia, também fora das telas, é uma tragédia ambiental e humana que vem afetando milhares de pessoas tanto em comunidades indígenas e tradicionais como nas cidades, comprometendo inclusive o turismo em Alter do Chão.
Em comum, essas e tantas outras obras audiovisuais que despontam Brasil afora têm muito mais do que os enredos sobre populações impactadas pelas diversas formas de violência que afetam a Amazônia, ou mesmo a “assinatura” dos povos tradicionais, cada vez mais protagonistas de suas próprias histórias. Elas são, também, uma ferramenta de luta pela proteção dos direitos e territórios desses povos. É a arte imitando a vida, ecoando a resistência dos povos amazônidas e nos provocando a refletir sobre nosso papel na proteção dessa sociobiodiversidade, como consumidores da floresta e da arte que vem dela.
*Vinícius Leal – jornalista com experiência em produção de notícias, redes sociais e comunicação estratégica em meio ambiente e povos tradicionais – é correspondente na Amazônia da Uma Gota no Oceano.
Saiba mais:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/txai-surui/2022/08/demarcando-o-espaco-indigena-nas-telas.shtml
https://www.festivaldegramado.net/es/noites-alienigenas-e-o-melhor-filme-de-longa-brasileiro-do-50o-festival-de-cinema-de-gramado/
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/festival-de-cinema-de-gramado/2022/noticia/2022/08/13/marcos-palmeira-recebe-o-trofeu-oscarito-no-50o-festival-de-cinema-de-gramado.ghtml
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/08/20/coproduzido-por-txai-surui-o-territorio-leva-luta-dos-uru-eu-wau-wau-aos-cinemas-americanos.htm
https://www.dw.com/pt-br/s%C3%B3-se-fala-da-amaz%C3%B4nia-quando-h%C3%A1-uma-trag%C3%A9dia-diz-jorge-bodanzky/a-52407978
https://protecao.com.br/geral/filme-pureza-conta-a-heroica-historia-da-maranhense-que-lutou-para-livrar-o-filho-do-trabalho-escravo-contemporaneo/
https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/06/13/interna_nacional,1372987/violencia-na-amazonia-e-estimulada-pela-omissao-no-combate-ao-crime.shtml
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/06/28/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-2022.htm
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/08/14/fantastico-revela-rede-de-avioes-e-helicopteros-a-servico-do-garimpo-ilegal-na-amazonia.ghtml
https://www.nytimes.com/interactive/2022/08/02/world/americas/brazil-airstrips-illegal-mining.html
Garimpo faz malária e desnutrição infantil explodirem entre os Yanomami
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/07/policia-prende-suspeito-de-matar-ari-uru-eu-wau-wau-lider-indigena-em-ro.shtml
https://portalamazonia.com/amazonia/faccoes-criminosas-veja-quais-sao-e-onde-atuam-na-amazonia-legal
https://globoplay.globo.com/v/10874252/