Por Monica Prestes
Uma das sete maravilhas do mundo antigo, a Biblioteca de Alexandria, no Egito, que por 600 anos figurou como o principal repositório de conhecimentos do mundo, foi destruída por incêndios. Seus pergaminhos foram queimados para abastecer as caldeiras dos 4 mil banheiros públicos da cidade por seis meses, em meados do ano 642. Mas há historiadores que defendem que, antes disso, a biblioteca, que chegou a reunir cerca de um milhão de documentos, deixou de ser prioridade do governo egípcio e enfrentou um melancólico corte de recursos públicos. O resultado: conhecimentos adquiridos e compartilhados por diferentes povos ao longo de séculos viraram cinzas simplesmente por não atenderem aos interesses do grupo dominante à época.
O roteiro é parecido com o que vive a Amazônia em pleno 2021. O enfraquecimento sistemático dos órgãos de proteção ambiental e o avanço das queimadas e do desmatamento vêm transformando em cinzas um patrimônio que sequer conhecemos totalmente: a biodiversidade. Um estudo publicado na revista científica ‘Nature’ em setembro mostrou que os incêndios na bacia amazônica entre 2001 e 2019 atingiram o território de 64% das espécies de plantas e animais estudados e de 85% das ameaçadas de extinção. Pesquisadores estimam que a cada 10 mil km² de queimada, 40 novas espécies são afetadas – e isso considerando só o que conhecemos.
Para se ter uma ideia, há 166 mil espécies de animais e plantas reconhecidos no Brasil, e sobre a maioria deles pouco ou quase nada sabemos. Das 16 mil espécies de árvores reconhecidas na Amazônia, por exemplo, menos da metade foi descrita em pesquisas. Estudos estimam que uma nova espécie foi descoberta a cada dois dias entre 2013 e 2015 na Amazônia – foram 381 novos registros nesse período.
Ameaçamos o pouco que conhecemos e, de 2019 para cá, estamos fazendo isso em um ritmo desgovernado. A Amazônia, região que concentra 10% da biodiversidade do planeta, já perdeu quase 20% de suas florestas e o ritmo da devastação vem aumentando nos últimos três anos. Segundo o Imazon, de janeiro a agosto de 2021, o desmatamento acumulado foi 48% maior do que no mesmo período de 2020.
E essa destruição não se limita à Amazônia. A última edição do Livro Vermelho do ICMBio, informe oficial sobre a situação da fauna e flora brasileiras, publicada em 2018, apontou que pelo menos 1.173 espécies de animais viviam sob risco de extinção no país em 2018 e ao menos dez espécies já desapareceram. Um estudo da Embrapa Pantanal revelou que pelo menos 17 milhões de animais vertebrados foram mortos pelo fogo durante as queimadas que devastaram 27% da cobertura vegetal do Pantanal em 2020. O Pampa, bioma que é rota de migração de aves, perdeu mais de um quinto (21,4%) da cobertura vegetal entre 1985 e 2020. Enquanto isso, o Cerrado viu o desmatamento e as queimadas consumirem 19,8% do seu território nesse mesmo período. A Mata Atlântica, onde vive metade das cerca de 170 espécies de aves ameaçadas de extinção no Brasil, tem apenas 12% de sua cobertura original.
Isso sem falar nas ameaças aos povos tradicionais, que detêm esse conhecimento ancestral sobre a floresta e são diretamente impactados pela destruição desses territórios. Uma pesquisa da Universidade de Zurique, na Suíça, revelou que 86% dos saberes desses povos tradicionais da Amazônia sobre o uso medicinal da floresta estão ameaçados pelo desaparecimento de línguas indígenas, uma vez que a difusão desse conhecimento costuma se dar pela prática oral, ou seja, quando uma etnia desaparece, o conhecimento tradicional desse povo, muitas vezes, some com ele. Não custa lembrar que o conhecimento indígena sobre a biodiversidade está por trás de muitas substâncias da medicina atual, como o ácido acetilsalicílico, princípio ativo da aspirina, que remete ao pó das folhas e da casca do salgueiro, usada pelos indígenas para aliviar dores e reduzir inflamações, a morfina, que veio das sementes da papoula, e relaxantes musculares, como a estricnina, derivada do curare, usado por indígenas na ponta de suas flechas para caçar.
Negócios sustentáveis
Nossas atitudes geram prejuízo de todo tipo, inclusive no sentido literal. O potencial inexplorado de negócios sustentáveis na Amazônia poderia render ao Brasil US$ 2 bilhões por ano com a exportação de produtos da floresta, como castanhas, açaí, cacau e peixes. Os dados são de um estudo publicado em abril deste ano pelo projeto Amazônia 2030, iniciativa do Imazon, Climate Policy Initiative, PUC-Rio e do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, situado em Belém, que reúne pesquisadores em torno de um plano de desenvolvimento sustentável para a região. Segundo a pesquisa, a exportação de produtos do extrativismo florestal não madeireiro, sistemas agroflorestais, pesca, piscicultura e hortifruticultura geram receita anual de US$ 300 milhões ao país, o que representa só 0,17% do mercado global desses produtos. Considerando a participação média do Brasil no mercado global, que é de 1,3%, esses produtos poderiam gerar uma receita anual de até US$ 2,3 bilhões. Ou seja, ainda há muito espaço para crescer.
Para se ter uma ideia, no projeto Amazônia 4.0, o pesquisador Carlos Nobre aponta que, enquanto pecuária gera de US$ 30 a US$ 100 por hectare e, o plantio de soja, de US$ 100 a US$ 200 por hectare, o cultivo de açaí apresenta lucro líquido médio de US$ 200 ha/ano em sistemas não manejados a até US$ 1,5 milhão em sistemas agroflorestais. Além disso, só utilizando a área já desmatada da Amazônia, que corresponde aos territórios de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro juntos, e que está 90% abandonada ou subutilizada, seria possível triplicar a produção agrícola do Brasil e ainda recuperar matas ciliares e nascentes.
E as possibilidades não param aí. A adoção de um modelo econômico que privilegie o manejo sustentável da floresta pode gerar US$ 1,5 bilhão por ano e receitas de US$ 220 milhões em ICMS para os estados amazônicos, só com o manejo de áreas desmatadas, apontou um estudo publicado em março pela Chatham House, de Londres. Além disso, o estudo da Amazônia 2030 apontou que o processamento de matérias-primas vendidas atualmente em estado bruto e o investimento na ciência e tecnologia de ponta para a descoberta de novos compostos, moléculas e materiais da biodiversidade são mercados promissores e ainda pouco explorados pelo Brasil.
Mas o desenvolvimento desses setores envolve políticas públicas, a formação de lideranças comunitárias e independentes e investimentos nas cadeias produtivas locais. Pesquisador associado e cofundador do Imazon, Beto Veríssimo destaca a importância de se investir em tecnologia e ciência na Amazônia para alcançar a tão almejada bioeconomia. Ele é uma das pessoas que usam a comparação da Amazônia a “uma grande biblioteca de Alexandria da biodiversidade”. Mas, observa o especialista, nossa capacidade de “ler” é limitada pela ciência e pelo fato de o conhecimento ancestral ter se perdido com os povos indígenas dizimados nos séculos 16 e 17. “Junto com eles, perdemos o conhecimento empírico que os indígenas adquiriram ao longo de 15 mil anos”, lembra Veríssimo. “A bioeconomia é uma dessas janelas de oportunidades, mas o Brasil está indo na direção contrária, porque além de não ter políticas públicas e investimentos nessa área, ainda está destruindo os recursos naturais que são a base dessa bioeconomia”.
Veríssimo, Nobre e tantos outros pesquisadores ecoam em seus estudos o que os povos tradicionais já sabem há gerações: se queremos o melhor da Amazônia, temos que dar a ela o melhor que temos. Isso inclui tecnologia de ponta, políticas públicas de proteção territorial e, claro, o compromisso com uma agenda ambiental positiva, cenário para o qual o governo brasileiro tem fechado as portas. A próxima oportunidade é logo ali: em novembro, na COP 26, em Glasgow, na Escócia, onde o Brasil poderá escolher entre mudar o curso atual (que poderá nos levar ao chamado ponto de inflexão da Amazônia) e finalmente, abrir as janelas da bioeconomia; ou riscar o fósforo que vai incendiar de vez nossa biblioteca de Alexandria da sociobiodiversidade.
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