O adversário foi desleal: não teve escrúpulos em usar armas de fogo, a mentira, sua falsa crença em Deus e até mesmo doenças — numa espécie de guerra biológica — para impor a sua vontade. Essa história aconteceu nos anos 1500, mas se repetiu como farsa nas últimas eleições. Realmente é assustador ver o Senado se transformar numa espécie de filial do Asilo Arkham — manicômio judiciário para onde são mandados os inimigos mais perigosos do Batman nos filmes e nos quadrinhos, como Coringa, Charada e Hera Venenosa. Mas, como diz a canção de Ivan Lins, “desesperar jamais, aprendemos muito nesses anos”. E este aprendizado nos rendeu vitórias históricas, que irão nos ajudar a “não entregar o jogo no primeiro tempo”, seja lá qual for o presidente eleito. Bola pra frente!
Quem teria mais a ensinar sobre a boa luta que os povos originários? Eles vêm resistindo há 522 anos e mantiveram a Amazônia praticamente intocada até as últimas décadas do século passado. Perdemos a combativa Joênia Wapichana — que deixou a Câmara Federal em alto estilo, aprovando o decreto que mudou o nome do Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas, aquele que Jair Bolsonaro tentou vetar —, mas em compensação o número de representantes dos povos originários eleitos em 2022 foi recorde. Sonia Guajajara, em São Paulo, e Célia Xakriabá, em Minas Gerais, fazem parte da Bancada do Cocar, lançada pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que indicou 30 candidaturas indígenas pelo país e conquistou mais de 446 mil votos. Já Juliana Cardoso, ligada ao movimento indígena urbano, é a primeira deputada federal indígena eleita pelo PT em São Paulo. Há ainda outros quatro parlamentares eleitos que se autodeclararam indígenas, entre apoiadores do ex-presidente Lula e do atual presidente, Jair Bolsonaro.
Ex-coordenadora executiva da Apib, Sonia, que já havia sido candidata à Vice-Presidência da República na eleição passada, foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, segundo a revista “Time”. Eleita por São Paulo com quase 157 mil votos, em voz ativa nos mais importantes fóruns internacionais, como a ONU. Já Célia Xakriabá, integrante da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) une sabedoria ancestral e educação formal: é Mestra em Desenvolvimento Sustentável e Doutora em Antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E como fala bem: foi apresentadora do podcast “Papo de Parente”, da Globoplay, no qual ajudou a popularizar ainda mais a cultura indígena e recebeu o aval de mais de 100 mil mineiros. Imaginem o que essa dupla vai aprontar no Congresso? Só de pensar nos discursos já bate uma ansiedade.
A bancada indígena terá uma aliada de peso: a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, uma extrativista que lutou lado a lado com Chico Mendes, no Acre. Nunca é demais lembrar que ela estava à frente da pasta quando foi implantado o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), desmantelado pelo governo atual. Graças e ele o desmatamento na região caiu de 27.772 km² para 4.571 km² entre 2004 e 2012. Entre agosto de 2021 e julho de 2022, período que compreende o chamado ‘calendário do desmatamento’, a área devastada chegou a 10.781 km² – foi o segundo recorde negativo consecutivo. E, até agosto, a maior floresta tropical do mundo já havia perdido quase 8 mil km² de verde, a pior marca dos últimos 15 anos, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). A volta de Marina a Brasília não poderia ter acontecido em melhor hora.
Outros importantes movimentos sociais também garantiram sua representatividade no Congresso. Os paulistas deram mais de um milhão de votos a Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto (MTST), que lhe garantiram o segundo lugar entre os deputados mais votados do país. Já o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o maior produtor de arroz orgânico da América Latina conseguiu furar o bloqueio das fake news e do preconceito, e emplacou dois nomes na Câmara Federal: o baiano Valmir Assunção e o gaúcho Marcon. A bancada ruralista agora terá um contraponto ao seu discurso hegemônico e nós ganhamos reforço na luta por comida mais saudável em nossas mesas.
O Quilombo nos Parlamentos garantiu 26 cadeiras do movimento no Congresso e em assembleias estaduais. Dos 14.712 candidatos autodeclarados pretos ou pardos nesta eleição, 525 foram eleitos — um aumento de 10,78% em relação a 2018. E, pela primeira vez, duas mulheres trans, Erika Hilton e Duda Salabert, garantiram assento na Câmara.
Foi uma vitória não só dos movimentos populares, da bancada do Cocar ou do Quilombo nos Parlamentos, mas da própria democracia. Ainda estamos longe do ideal, mas já é um Brasil com mais cara de Brasil, um país que tem em sua sociobiodiversidade uma de suas maiores riquezas, e que joga no ataque no campo da preservação do meio ambiente. Não será fácil, mas podemos virar esse jogo. Por isso, “nada de correr da raia, nada de morrer na praia”.
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