“É preciso uma aldeia para se educar uma criança”: a mesma África de onde vieram os antepassados dos quilombolas nos ensinou essa preciosa lição. O famoso provérbio, que deveria guiar toda sociedade que se preze, serve de base para que essa população transmita seu conhecimento ancestral às novas gerações. Está no papel, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História têm a memória coletiva como um de seus principais fundamentos. Afinal, cada ser humano tem uma experiência de vida única e um saber adquirido dessa junção a oferecer. Somos – ou deveríamos ser – todos professores. E alunos. O dia 15 de outubro, portanto, Dia do Professor, deveria ser de todos.
Os quilombos são bibliotecas vivas, onde vêm sendo preservadas, ao longo dos séculos, costumes e tradições que são transmitidas pelos mais velhos aos mais jovens. São conhecimentos de interesse não só deles como de todos, que vão da utilização de ervas medicinais a técnicas de agricultura sustentável e diversificada. Não fossem eles, muitas espécies de vegetais nativos comestíveis teriam sido extintos. Seu trabalho na preservação das chamadas sementes crioulas, um de nossos maiores patrimônios genéticos, é vital.
Segundo o Censo Escolar de 2020, existem 2.526 escolas quilombolas Brasil afora, onde estudam 275.132 pessoas e lecionam 51.252 professores. De acordo com uma pesquisa feita pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) em 2019, 83% dos quilombos possuem escolas; mas só 30% delas têm acesso ao material didático específico determinado pelas diretrizes curriculares e uma porção ainda menor, apenas 21%, contam com bibliotecas ou salas de leitura. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) produziu um relatório no mesmo ano, que apontou que 75% dos quilombolas terminavam o ensino fundamental, mas só 10% concluíam o médio.
O passo era de jabuti, mas estávamos avançando, até o governo atual voltar a usar arrobas para pesar descendentes de africanos aqui escravizados e interromper a certificação de suas terras, etapa fundamental para a garantia de acesso aos seus direitos. Não custa lembrar que os primeiros negros trazidos para o Brasil, por volta de 1550, só foram libertos (sic) em 1888 – ou seja, mais de 300 anos depois – e só conquistaram o direito ao voto em 1934. O direito à propriedade de suas terras tradicionalmente ocupadas só veio por meio do Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988. Em 1996, foram titulados oficialmente os primeiros quilombos, Pacoval e ÁguaFria, no Pará.
Mas os quilombolas – e a população brasileira em geral – só tiveram reconhecido o direito a estudarem a História de seus ancestrais em 2003, quando foi sancionada a Lei nº 10.639, que tornou obrigatório oseu ensino nas escolas. Antes, era como se essas pessoas não tivessem uma trajetória pregressa, como se suas histórias tivessem começado quando seus antepassados chegaram aqui atados a grilhões – quando muitos deles eram oriundos de civilizações mais avançadas que a europeia, na época.
Existem comunidades quilombolas em todas as regiões do Brasil e em praticamente todos os Estados – as exceções são Acre e Roraima. Pela primeira vez, o Censo vai mapear todas elas. Algumas estão localizadas na Amazônia profunda, enquanto outras são urbanas. Cada uma, portanto, tem sua peculiaridade, o que significa que as suas escolas precisam ser adaptadas às realidades locais – que vão desde a arquitetura a referências e valores sociais, culturais, históricos e econômicos, e até a própria merenda da criançada. Mas uma coisa é comum a todas: a luta contra o racismo e o incentivo ao crescimento da autoestima dessa população, que foi condicionada pelo status quo a se considerar inferior.
Daí a importância do projeto “Historinhas do Quilombo”, iniciado este ano no Escola Estadual Quilombola Tereza Conceição Arruda, que fica na comunidade de Mata Cavalo, em Mato Grosso – Estado extremamente conservador, que só não conserva a parte da Amazônia que lhe cabe, mas essa é outra história. “Era uma vez, num quilombo chamado Mata Cavalo, localizado no cerrado do município de Nossa Senhora do Livramento, estado de Mato Grosso, uma menina negra, de olhos castanhos e cabelos bem crespos”: assim começam os clássicos da literatura infantil, como “Branca de Neve e os Sete Anões”, recontados à moda local.
A ideia de usar a ficção para mudar a realidade de seu povo partiu da educadora Gonçalina Eva Almeida de Santana que, assim como tantos outros professores quilombolas, fazem da educação um ato de resistência sociocultural. Afinal, é assim que se constrói o futuro nos quilombos: a partir da valorização e do compartilhamento dos vários saberes e fazeres de sua cultura, como naquela aldeia do ditado africano. E ele precisa começar pela sala de aula.
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