Quem nunca provou da culinária quilombola não sabe o que está perdendo. Além de ser muito gostosa, o que costumam chamar de ‘manjar dos deuses’, ela é saudável e não agride a natureza. Junta os três “s” – sabor, saúde e sustentabilidade – porque sua agricultura semeia receitas ancestrais, como não usar agrotóxicos ou fertilizantes químicos, que envenenam a comida da maioria da população brasileira, e preserva o meio ambiente. Na verdade, faz mais que preservar: regenera. Quilombolas recuperam nascentes de rios e solos degradados, além de promoverem o reflorestamento, entre vários outros serviços ambientais importantíssimos.
Mais um ingrediente que realça o paladar dessa cozinha é a sua diversidade: como há quilombos em todas as regiões do Brasil, eles também protegem a maioria de nossos biomas e suas espécies vegetais nativas, e os pratos são variados. Come-se diferente em cada comunidade, mas sempre se come bem – quilombolas usam os frutos naturais da terra onde vivem. Segundo dados preliminares do IBGE, que no momento realiza o primeiro censo específico para esta população, há cerca de mil localidades quilombolas na Amazônia. E a maior floresta tropical do mundo é comprovadamente protegida por eles.
Em 2011, a Comissão Pró-Índio de São Paulo realizou um estudo em 35 comunidades da região de Oriximiná, no Norte do Pará. Elas ocupam 6.944 km² e, até o ano 2000, somente 64 km² dessa área havia sido desmatada; entre 2006 e 2009, apenas 6 km². Mas não só: os quilombolas amazônidas são grandes produtores de alimentos. E foi justamente na Floresta Amazônica que começou o mapeamento que está sendo feito pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) sobre essa produção, que estava fora do radar.
“Para ter acesso a crédito e políticas de governo, o próprio Estado que nega nossos direitos exige que tenhamos nossos territórios regularizados. Não à toa, essa é nossa principal preocupação. Mas há 20 anos não havia dados sobre a nossa produção. Por isso, a Conaq começou essa iniciativa. A gente precisava nos colocar no mapa da agricultura familiar, como produtores de alimentos”, explica Kátia Penha, coordenadora nacional da entidade. Este alimento não fica restrito às comunidades quilombolas: também chega à merenda escolar de diversos municípios e às mesas de milhões de brasileiros. Poderia ser muito mais, se políticas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) não tivessem sido tão enfraquecidos pelo governo atual.
Olhos e ouvidos do mundo estão voltados para a Amazônia, mas o Brasil abriga outros ecossistemas igualmente importantes, que estão sendo devastados às escondidas e silenciosamente. Daí a necessidade de a Conaq estender esse trabalho fundamental a outras regiões. Os quilombolas também estão atentos aos efeitos das mudanças climáticas e trabalhando em formas de amenizá-los. Nunca é demais lembrar que Bahia, Minas Gerais e Tocantins foram os estados mais prejudicados pelas chuvas que castigaram o país na virada de 2021 para 2022. E, nos dois primeiros, estão localizadas os maiores número de comunidades quilombolas do país, respectivamente 1.046 e 1.021.
Devido a isso, para esta nova fase do estudo foram selecionados quilombos baianos, mineiros e tocantinenses, além de comunidades de Goiás, Maranhão, Mato Grosso e Paraíba, e dois biomas: Cerrado e Caatinga. Do primeiro, nem é preciso se estender muito: na caixa d’água do país, nascem oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras. Mesmo assim, está sendo devastado pela monocultura da soja, em mais um tiro no pé do agronegócio irresponsável, que ricocheteia na gente como bala perdida. “Já a Caatinga é um bioma que não é reconhecido como produtor de alimento. O sudestino vê o semi-árido nordestino como uma região morta. Mas ela tem um solo riquíssimo, capaz de produzir comida não só para o Nordeste, como para todo o país”, diz Kátia Penha.
A iniciativa da Conaq de mapear a produção rural abrange mais de 60% das comunidades certificadas do país e também tem como objetivo apoiar na autonomia econômica dessas populações. “É bom lembrar que a agricultura familiar é uma atividade que gera emprego e renda”, frisa Penha.
Toda a população brasileira deveria ser eternamente grata aos quilombolas, mas parte dela retribui o bem que nos fazem com preconceito, violência e invasões, e impedindo que legalizem suas terras, como manda a Constituição de 1988 – até hoje, só 4% deles foram titulados. Aquilombar é servir à vida e à natureza: aquilombemos todos.
Saiba mais:
Diagnóstico das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar quilombola