Ouro de tolo verde

fevereiro 2022

O terreno é fértil e a safra de absurdos no Brasil cresce de forma assombrosa. Agorinha mesmo, a Câmara aprovou, em regime de urgência, o famigerado PL do Veneno. Daí é comum a gente esquecer um ou outro despautério. Alguém se lembra do “dia do fogo”? O evento (sic), que segundo a Polícia Federal, teria sido promovido por ruralistas no Pará, dominou os noticiários em agosto de 2019, ano em que incêndios criminosos devoraram 9.060 km² de Amazônia. Os malfeitores atearam fogo em 197 pontos espalhados por reservas florestais de três municípios paraenses e o deixaram tomar conta de tudo. Não foi só por pura maldade, queriam botar algo que julgavam mais lucrativo no lugar. E a decisão apressada dos deputados em flexibilizar o uso de agrotóxicos tem relação com isso.

O crime permanece impune, mas o que motivou o “dia do fogo” já se sabe: plantar soja. Ela só costuma chegar diretamente ao prato do brasileiro médio na forma de óleo, mas responde por 49% do cultivo de grãos no país. Não há pedaço de terra que não queiram tomar para ela, seja terra indígena, quilombo ou unidade de conservação, e junto chegam obras gigantes de infraestrutura e mais agrotóxicos. Mas além dos danos ambientais, o apetite insaciável e nada saudável do agronegócio pela leguminosa também é um dos maiores responsáveis pela volta da fome e da carestia no Brasil.

É ouro verde: a produção brasileira corresponde a 40% do comércio mundial do grão e a 73% do óleo de soja. Cerca de 75% tomam o caminho da China sem que a gente sinta nem o cheiro. Segundo a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), o país exportou 80 vezes mais soja em janeiro deste ano – 4,274 milhões de toneladas – do que no mesmo mês em 2020. Entre 1988 e 2020, a produção de soja cresceu 576%. No mesmo período, as lavouras dos três alimentos mais consumidos pelos brasileiros encolheram: a de arroz caiu 73%; a de mandioca, 33%; e a de feijão, 54% – segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o último terá a menor área cultivada desde 1976.

E ainda corremos o risco de azedarem ainda mais nosso arroz, feijão e farinha do dia a dia. Nem precisava, pois mesmo com a legislação anterior o governo atual liberou 1.517 novos agrotóxicos, uma incrível média de 505 por ano; mas, mesmo assim, a Câmara aprovou de supetão, no último dia 9, o Projeto de Lei 6299/2002, vulgo PL do Veneno, que agora vai ser analisado pelo Senado. Uma das mudanças previstas é que o registro de novas substâncias seria decisão exclusiva do Ministério da Agricultura – cuja titular é conhecida como “musa do veneno”. O agro que serve ao Brasil ou o Brasil que serve ao agro?

Enquanto trata o grande produtor a pão de ló, dá migalhas para o pequeno. Entre os ministérios, o da Agricultura teve um dos menores cortes do orçamento aprovado pelo presidente para este ano, R$ 87,2 milhões. Para se ter uma ideia, Trabalho e Educação perderam, respectivamente, R$ 1 bilhão e R$ 739,9 milhões. Já o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) teve o maior corte de verba do orçamento geral – perdeu R$ 1,3 bilhão ou 35% do total. O pão que o diabo amassou e sem manteiga.

Quem diz é o Censo Agropecuário do IBGE de 2017: a agricultura familiar ocupa 77% das propriedades produtivas do país – 23% de nossa área agrícola total – e assegura renda e comida na mesa para 10 milhões de brasileiros. “O corte no Pronaf surpreendeu muito porque, em São Paulo, por exemplo, 78% dos agricultores são pequenos e cerca de 90% usam o programa”, disse Tirso Meirelles, vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp). Outros mecanismos voltados para os pequenos agricultores e a população mais carente, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), também estão morrendo de inanição. Seria a fome não uma crise, mas um projeto?

Mas o pior é que esse ouro verde é de tolo. O desmatamento para a expansão da fronteira agrícola e as mudanças climáticas têm acentuado os períodos de seca na região conhecida como Matopiba (que engloba trechos de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), a casa da soja por excelência. O comércio e a política internacionais são uma selva e 44% dos princípios químicos ativos usados em agrotóxicos no Brasil são proibidos na União Europeia, o que soa como música aos ouvidos da concorrência.

No último dia 12, o presidente da França, Emmanuel Macron, que está em campanha para a reeleição, mandou na lata, quer dizer, no seu Twitter: “Continuar dependendo da soja brasileira é endossar o desmatamento na Amazônia”. Ele quer que os franceses plantem a própria soja. Os chineses, que não gostam de depender de ninguém, estabeleceram a meta de aumentar sua produção em 40% até 2025, chegando a 23 milhões de toneladas de grãos. O agronegócio pode ficar sem freguês e sem nada para vender. E pode sobrar só veneno para os nossos pratos, caso a gente não pressione o Senado a rejeitar o PL 6299.

 

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