O escritor Ariano Suassuna costumava dizer que “o otimista é um tolo e o pessimista, um chato; então, prefiro ser realista”. Não carregar nas tintas ajuda a enxergar mais claramente e isso pode ser decisivo em momentos de crise. O novo coronavírus pegou o mundo num momento especialmente delicado, marcado por disputas políticas que põem a própria ciência em dúvida, graves crises sociais e econômicas, e o avanço sem trégua das mudanças climáticas. À primeira vista, a perspectiva do mundo pós Covid-19 é sombria. Mas é possível sonhar um futuro melhor mesmo sem apelar para o otimismo: quando a gente enxerga com clareza, escolhe os melhores caminhos para concretizá-lo.
“Siga o dinheiro”. A frase popularizada pelo filme “Todos os homens do presidente” aponta algumas pistas. A atual crise do petróleo não parece ser apenas uma crisezinha, ela pode decretar a aposentadoria dos combustíveis fósseis antes mesmo do que imaginávamos. Um sinal: o Fundo Rockefeller Family anunciou, no último dia 22, que abandonará seus investimentos no setor. É uma notícia emblemática, já que a fortuna da família nasceu, há um século, com a companhia petrolífera Standard Oil. A instituição também decidiu retirar seu dinheiro da Exxon Mobil Corp, alegando que a empresa enganou a população sobre os riscos do desequilíbrio climático. Ainda que seja somente uma preocupação com a imagem da marca, a decisão quebra uma antiga tradição e aponta um desvio de rota relevante.
Agora uma evidência: o último relatório da Agência Internacional de Energia (AIE), o “Global Energy Review 2020”, indica que a demanda global de energia em 2020 deverá cair 6%. Este tombo é sete vezes maior do que o registrado depois da crise financeira de 2008/2009. Ele equivale a toda a demanda anual de energia da Índia – ou o que consomem juntos o Reino Unido, França, Alemanha e Itália em um ano. “Este é um choque histórico para todo o mundo da energia”, afirmou Fatih Birol, diretor executivo da entidade. “Em meio às crises econômicas e de saúde, incomparáveis, de hoje, a queda na demanda por quase todos os principais combustíveis é impressionante, especialmente para carvão, petróleo e gás”, disse ainda Birol.
O levantamento da AIE aponta também que quem vem segurando as pontas são as fontes de energia renováveis – à frente, a solar e a eólica que, somadas, já têm capacidade instalada maior do que as hidrelétricas. Cada vez mais baratas, elas devem crescer 5% este ano e podem atropelar. E em tempos de pandemia, a adoção em massa do transporte coletivo movido a eletricidade ganha mais uma recomendação: “Além de ser mais solução limpa e barata para o transporte, essa energia vai reduzir os gastos com o já sobrecarregado sistema de saúde, afinal, a poluição reduz pelo menos três anos de vida das pessoas nas grandes cidades”, atestou Carlos Nobre, presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. A pandemia deve causar uma redução de 8% nas emissões de CO₂ – seis vezes maior que a de 2009. Não é o suficiente para manter a temperatura do planeta estável; além disso, outro efeito colateral das mudanças climáticas é o surgimento de novas doenças – ou a volta de antigas, como a febre amarela urbana. Mas é uma prova de que é possível reduzir emissões rapidamente.
Em seu recente livro, “O amanhã não está à venda”, Ailton Krenak fez um alerta: “Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver ano que vem”. Ou como disse a autora de “Economia donuts”, a economista e pesquisadora do Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, Kate Raworth, “quando, de repente, temos que nos preocupar com clima, saúde, empregos, moradias e cuidados com a comunidade, existe uma necessidade (…) Não é apenas uma ideia alternativa do mundo”. Não há escolha: passada a pandemia vamos precisar mudar a forma como nos relacionamos com a Terra. E não só em escala planetária: quem nestes dias de isolamento ainda não refletiu sobre o que é essencial e o que é supérfluo para si?
Pequenas mudanças de comportamento podem se tornar hábitos saudáveis – para você e para o mundo. Uma transformação está em curso e ela é tocada por iniciativas individuais ou comunitárias. Curiosamente, o isolamento social pode nos aproximar: laços de solidariedade e de confiança precisam ser formados ou reforçados. No Brasil inteiro, pequenos produtores rurais e artesãos têm se associado para fazer seus produtos chegarem diretamente ao consumidor – que também está se unindo em grupos de compra. Gotinhas que se reagrupam para formar um novo oceano.
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