O tiozão do pavê é uma espécie de Peter Pan que perdeu o senso crítico e o bonde da História. O mundo não é a Terra do Nunca, está em movimento constante, e ele não se conforma – geralmente por motivos inconfessáveis. Quando é contrariado, age como criança mimada. Dois bons exemplos recentes: o presidente da Câmara botando em votação o Projeto de Lei 191/2020, que libera a mineração em terras indígenas, logo depois de uma grande manifestação contrária em frente ao Congresso Nacional; e o da República, concedendo a si mesmo a Medalha do Mérito Indigenista, porque sua ideia foi rejeitada até mesmo pelas mineradoras. É o que se chama de acusar o golpe. Sentiu, Tino?
“O que nós sempre quisemos foi fazer com que vocês se sentissem exatamente como nós”, disse Bolsonaro, usando um indefectível cocar, ao receber a autoconferida condecoração. Exatamente como nós quem, cara-pálida? O senso de humor indígena é sofisticado e os povos originários não têm medo de mudanças e de assimilar novos costumes. É assim desde muito antes Afonso Henriques, o Conquistador, coroar-se o primeiro rei de Portugal, láááá no século XII. A xenofobia não faz parte de seu vocabulário.
No último dia 10, Tonica Homangadje Suruí, de 28 anos, formou-se a primeira biomédica do povo Suruí, em Rondônia. “Eu escolhi biomedicina porque é muito importante para nossa cultura, nós também usamos plantas medicinais e é uma área muito boa porque a gente precisa de profissionais para cuidar da saúde indígena”, disse ela. E por que não faria isso? Desde que desembarcaram aqui, os europeus trouxeram doenças para as quais os pajés não conheciam a cura.
Adaptar-se é resistir e sobreviver. Do mesmo modo, por que os indígenas abririam mão das novas tecnologias? Só que em vez de usar o celular para espalhar lorotas, os povos originários o transformaram numa importante fonte de informação e instrumento de mobilização. À beira de extinção, o tiozão do pavê tem muito a aprender com eles.
A família e a sociedade hoje são plurais, e este é um caminho sem volta. Piadas machistas, xenofóbicas, racistas e homofóbicas que outrora arrancavam risos cúmplices agora só causam constrangimento, e lorotas ridículas – hoje chamadas “fake news” – não colam mais. Não à toa, os convites para festas começam a rarear para o tiozão do pavê. E aí, sobra para quem não tem nada a ver com isso, os seus parentes mais próximos. O Brasil, antes convidado de honra de eventos internacionais, que via seu prestígio crescer nos últimos anos, começa a dar com a cara na porta. Quem paga pelos erros de seus governantes é o povo; somos barrados no baile por causa de gente que não tem modos.
Sejamos justos, porém: o governo brasileiro não é o único a agir de forma imatura. A birra do mandachuva russo Vladimir Putin tem feito muita gente se comportar impulsivamente, sem medir consequências, como uma criança na primeira idade. Mesmo quem também parecia mais atento às questões contemporâneas mais vitais está trocando os pés pelas mãos. O presidente da França, Emmanuel Macron, que até bem pouco tempo era visto como uma liderança ambiental consciente, usa a invasão da Ucrânia como desculpa para voltar a investir em energia nuclear. De nada adiantou Chernobyl voltar às manchetes por causa da guerra e deixar ainda mais claro que isso é uma tremenda bola fora.
Como desgraça pouca é bobagem, acreditava-se que o conflito no coração da Europa iria acelerar a transição energética, mas ele pode provocar um efeito contrário. Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, adverte que estamos “andando como um sonâmbulo para a catástrofe climática”. A Alemanha, por exemplo, um dos maiores fregueses do gás natural da Rússia, cogita comprar mais petróleo dos árabes para suprir suas necessidades. Está na hora de acordar o sonâmbulo: em 2020, desastres relacionados ao desequilíbrio no clima do planeta fizeram 30 milhões de refugiados, cerca de três vezes mais que as guerras. Já passou da hora de darmos uma trégua ao planeta, e o Brasil poderia cumprir o seu papel natural de ser o grande mediador de um acordo de paz definitivo.
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