Titulação já para os quilombos do Cerrado |
Uma perspectiva quilombola |
*Por Sandra Braga e Antonio Oviedo
A luta ancestral pelo direito à terra e ao espaço para viver de acordo com preceitos seculares envolve resistir à volúpia capitalista da monocultura agrícola, que engole trechos cada vez maiores dos rincões brasileiros. A batalha se dá em boa parte do país – da Amazônia ao Pampa, do Pantanal à Caatinga – e é particularmente intensa no Cerrado.
Pesadas ameaças ambientais espreitam as populações quilombolas em Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Piauí. Nada menos que 19 territórios (um quarto de todos naquele pedaço do Brasil) estão sob alta vulnerabilidade, um quadro alarmante que até hoje não recebeu a devida atenção das autoridades.
O Instituto Socioambiental dimensiona o tamanho do problema em estudo sobre a vulnerabilidade socioambiental dos territórios quilombolas no Cerrado. Pioneiro ao adaptar o modelo criado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para investigar os perigos que cercam os quilombos, o levantamento aponta que todos os territórios em Mato Grosso, uma das mais cobiçadas fronteiras do agronegócio, estão em alta vulnerabilidade. Outros estados com muitos territórios em situação dramática são Tocantins (75%), Minas Gerais (62,5%) e Goiás (55,6%).
A não titulação dos territórios quilombolas potencializa os riscos de maneira contundente. Os territórios sem titulação concluída apresentam níveis (ou graus) de vulnerabilidade maiores, com o consequente risco para os ecossistemas locais e, sobretudo, as populações que os preservam.
Os indicadores das pressões nos territórios são aferidos por mudanças na cobertura vegetal e atividades econômicas venenosas, tais como mineração, cadastro ambiental de imóveis rurais (CAR) ou obras de infraestrutura planejadas. De outro lado, o indicador de capacidade adaptativa inclui o status do reconhecimento do território e a cobertura remanescente de vegetação nativa, além da população residente no território.
Em meio a mudanças climáticas cada vez mais dramáticas, ameaças reais à continuação da vida humana no planeta, as comunidades quilombolas dão aulas cotidianas de sustentabilidade. Manejam seus territórios por meio de conhecimentos tradicionais, sedimentados no respeito à terra, às águas, aos animais e aos encantados, a partir de saberes africanos e em diálogo com o conhecimento indígena. Conjugam cuidado e simplicidade, para apresentar resultados incontestáveis.
Exemplo educativo para entender o valor do jeito afrobrasileiro de fazer está no Quilombo Kalunga, um dos 63 do Cerrado e o maior do país em extensão (262 mil hectares). Por lá, a vegetação está preservada em 83% do território – no resto de Goiás, o bioma sobrevive em irrisórios 30% da cobertura original. Vizinho ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o santuário quilombola há 200 anos toca a vida em sintonia precisa com o meio ambiente. Apenas 10% do território teve a titulação concluída até o momento.
As comunidades quilombolas no Cerrado e seus territórios são essenciais na luta pela sustentabilidade. O empoderamento das suas populações beneficiará a gestão territorial; assim, o combate e controle de atividades ilegais dentro e ao redor daquelas comunidades precisam se tornar política permanente e incansável do Estado.
O cancelamento de requerimentos minerários e cadastros de imóveis rurais sobrepostos aos territórios, a adequada consulta pública para o licenciamento de obras de infraestrutura e o fortalecimento das políticas de gestão territorial devem ser inegociáveis, em nome de reduzir a vulnerabilidade socioambiental dos territórios – e da defesa do meio ambiente.
É para os quilombolas – e para todos nós.
*Sandra Braga é coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
Antonio Oviedo é Pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA)