Vozes da terra livres

maio 2021

Esta semana, a Justiça teve de conter o ímpeto antidemocrático da Funai (Fundação Nacional do Índio) em relação a Sonia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e Almir Suruí, coordenador geral da Associação Metareila do Povo Indígena Paiter Suruí. Ambos foram intimados a depor pela Polícia Federal após a fundação denunciar atividades legítimas desenvolvidas pelas lideranças como crimes. Para isso, a Funai se baseou na empoeirada Lei de Segurança Nacional (LSN) – uma herança maldita da ditadura. No fim, a própria PF concluiu que as acusações não faziam sentido e encerrou os inquéritos. Melhor assim.

Tanto Sonia como Almir foram chamados às falas por críticas feitas pelas entidades que representam à conduta do Executivo no combate à pandemia. A Funai achou por bem acusá-los de difamação. Considerando que a principal função do órgão é defender os direitos indígenas, é como se o seu advogado estivesse trabalhando por sua condenação – com o agravante de saber que você é inocente. Pouco justo, não é? Para piorar, convém lembrar também que, em agosto do ano passado, a Apib ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o governo federal, justamente por conta da negligência em relação à saúde dos povos indígenas durante a pandemia. E o que aconteceu? A ADPF foi acatada de pronto pelo ministro Luís Roberto Barroso, que ordenou que o Executivo apresentasse um plano emergencial. Este já está em sua quarta versão. Quer dizer, tudo indica que o governo… merecia mesmo ser criticado.

O Brasil anda um caos, mas é bom ver certas coisas encontrarem, aos poucos, o seu devido lugar. Este caso está repleto de exemplos neste sentido. No último dia 4, a Câmara aprovou um projeto que revoga a LSN. No dia seguinte, o inquérito contra Sonia e a Apib foi trancado pela Justiça Federal. E no dia 6, foi a vez do mesmo acontecer com a investigação que tinha Suruí como alvo. Passado o susto, o episódio ao menos serviu para revelar nas entrelinhas algo muito importante: a inegável relevância conquistada pelo movimento indígena. O adversário acusou o golpe.

Dissociar desenvolvimento de preservação ambiental cheira à naftalina e ninguém sabe melhor disso do que os indígenas. Guardiões de um conhecimento milenar sobre a natureza, eles não ficaram no passado – como muitos de seus detratores – e encontraram rapidamente seu lugar em um mundo globalizado, com fronteiras cada vez mais raras e oportunidades de diálogo cada vez maiores. Em 2020, Sonia recebeu pela Apib o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, concedido pelo Instituto de Estudos Políticos de Washington. Já Suruí foi premiado em 2008 pela Sociedade Internacional de Direitos Humanos, o que lhe rendeu notoriedade suficiente para desenvolver ações de monitoramento da floresta em parceria com o Google.

Hoje, as lideranças indígenas do Brasil têm cadeira cativa em conferências de organizações como a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E quando elas falam, quem está ouvindo não costuma sair da sala, como acontece com presidentes de países com filme queimado em outros encontros internacionais.

Nossos povos tradicionais levaram seu recado aos 4 cantos do mundo e, diante de um governo saudoso do autoritarismo e outras práticas antiquadas, o contraste não poderia ser maior. Presa ao clientelismo que serve de base para toda corrupção e atraso, a chamada Nova Política tem se revelado uma piada de mau gosto. Já os indígenas, com sua articulação, conhecimento e respeito ao meio ambiente, representam claramente o amanhã com que sonhamos. Todos sabemos que, por mais que tente, o passado não é capaz de impedir o futuro. As vozes da terra estão livres e cabe a nós engrossar este coro. Não só porque é justo, mas também porque o que está em jogo é o bem comum.

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