Amazônia e mineração ilegal são como álcool e direção: não combinam. O último exemplo vem de Uiramutã, a 290 quilômetros de Boa Vista, em Roraima. Pontos turísticos conhecidos pela água cor de esmeralda, as cachoeiras Sete Quedas e Urucá apareceram cheias de um líquido marrom em fotos divulgadas pela Folha de São Paulo esta semana. Motivo: a exploração irregular de minérios na região, que fica dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Indiferente a isso, o governador sancionou na segunda-feira uma lei que libera o garimpo nas terras do estado. Por trás da confusão, há uma pergunta que o Brasil ainda não respondeu: vale a pena pôr a floresta em risco em troca de dinheiro?
O incentivo à mineração na Amazônia é uma das obsessões de Bolsonaro mais difíceis de entender. O tema voltou à pauta no último dia 3, quando o presidente da república apresentou a liberação da atividade em terras indígenas como uma de suas prioridades ao deputado federal Arthur Lira, novo presidente do congresso. Para começo de conversa, 86% dos brasileiros são contra a exploração de minérios nestas áreas, segundo o Datafolha. Elaborado pelo Governo Federal para regulamentar a atividade, o projeto de lei 191/20 prevê a permissão para lavra garimpeira em terras indígenas – algo vetado pela Constituição.
Além disso, os próprios indígenas não estão muito interessados no assunto. “A nossa relação com a terra é totalmente diferente, é de preservação da terra e dos recursos naturais”, disse Luiz Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Por sua vez, as mineradoras também não querem explorar estes locais. “Se é complexo e moroso trabalhar numa área sem esse tipo de conflito, imagina dentro de uma área dessas”, explicou o empresário Luiz Maurício Azevedo, empresário e presidente da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM).
Sem o interesse dos indígenas e com as companhias fora do páreo, aventureiros que atuam na mineração sem compromisso com a natureza são os únicos beneficiados pela medida defendida por Bolsonaro.
Mas por que o filme da mineração anda tão queimado? É fácil entender. Você sabia que, para cada quilo de ouro produzido, 1,3 quilo de mercúrio é liberado no meio ambiente? A lista de problemas não para por aí. O cientista americano Philip Fearnside identificou um padrão nas regiões amazônicas que abrigam a atividade. Quando o minério acaba, os trabalhadores viram posseiros e o desmatamento dispara. Só entre 2005 e 2015, mais de 11 mil quilômetros quadrados de floresta foram abaixo por conta disso, segundo estudo publicado na Nature.
As complicações continuam. Lugar com gente precisa de estradas. Elas valorizam as terras às suas margens e são outro motor de destruição da mata. Uma análise do WWF apontou que 75% do desmatamento da Amazônia se deu perto de rodovias e, de acordo com estimativas publicadas na revista PNAS, 2,4 milhões de hectares de floresta poderiam vir abaixo se 12 mil quilômetros de vias previstos para região saíssem do papel.
Toda esta destruição ambiental gera consequências. As árvores mortas e cortadas viram combustível para incêndios. Só no ano passado, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais contou 103.161 casos na Amazônia – um aumento de 16% em relação a 2019. Com as mudanças climáticas, as secas estão mais frequentes, o que potencializa o fogo. A estação seca hoje já é quatro semanas maior do que era no sul e sudeste da Amazônia na década de 1980, segundo o cientista Carlos Nobre.
Este calor todo vai matando a vegetação e, aos poucos, transformando a floresta tropical em savana. Se isso acontecer, não teremos uma mera mudança na paisagem. Doenças hoje restritas à mata podem se tornar mais comuns. Aliás, cerca de 70% dos últimos surtos epidêmicos vividos pela humanidade começaram assim, de acordo com María Neira, diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde. Para ela, preservar a floresta não é uma questão de ecologia, mas de saúde pública. “O planeta, nós o estamos destruindo, mas ele vai encontrar uma maneira de sobreviver; os humanos, não”, adverte.
Este processo pode ser freado? A boa notícia é que sim. E nós até sabemos o que fazer. Em um passado recente, medidas como o bloqueio de empréstimos de bancos públicos a empresas com multas pendentes em órgãos ambientais já surtiram efeito e ajudaram na preservação da floresta. Além disso, ideias como a bioeconomia podem ajudar o garimpeiro a trocar o papel de inimigo do meio ambiente por conta da falta de oportunidades pelo de amigo da natureza. Um hectare de soja rende, em média, R$ 604 por ano – contra R$ 12,4 mil de uma área do mesmo tamanho dedicada ao cultivo de espécies nativas, como o açaí e a castanha do pará. Detalhe: é dinheiro que vem sem que nenhuma árvore se vá.
Divulgada nesta semana, uma pesquisa do Ibope indicou que 77% dos brasileiros consideram preservar a meio ambiente é o mais importante, ainda que isso signifique menor crescimento econômico e geração de empregos. Nós estamos com a faca e o queijo na mão. Salvar a floresta é o interesse de maioria, o melhor para nosso futuro e, de quebra, o que rende mais dinheiro.
Em nome de que fazer o contrário?
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Saiba mais:
Folha – Incentivado pelo senador da cueca, garimpo ilegal emporcalha cachoeiras em terra indígena
Jornal Nacional – Governador de Roraima libera garimpo no estado e com uso de mercúrio
Folha – Maioria dos brasileiros rejeita abrir mineração em terras indígenas
Valor – Mineradoras descartam explorar áreas indígenas
National Geographic – Imagens aéreas mostram o impacto da mineração na Amazônia
O eco – Em 10 anos, mineração causou 9% de desmatamento na Amazônia
Nature – Mining drives extensive deforestation in the Brazilian Amazon
WWF – Maior parte do desmatamento da região está concentrado nas rodovias
Valor – “Savanização da Amazônia já está ocorrendo”, diz Nobre
Amazônia Real – O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 6 – Commodities e governança